Errar a selecção de um item lexical é tão ou mais grave do que errar a ortografia, e o efeito pode ser a manipulação da informação, escreve Ana Martins, em artigo publicado no semanário português Sol de 29 de Novembro de 2008, na coluna Ver como Se Diz.
Em cada uma das citações abaixo há um erro de língua. Veja o leitor se os detecta:
« "Acredito mesmo que vou fazer uma marca excepcional", profetiza [Obikwelu], enquanto desvaloriza o facto de não ter corrido, este ano (…)» ( Público, 7/8/08).
Conseguiu?
Dou-lhe uma pista: são erros provocados não pelo desconhecimento da forma, mas pela falta de assimilação do sentido da palavra: dos contextos discursivos em que aparece, do registo de língua a que pertence, das relações de dependência que estabelece com outras palavras na frase, dos valores ideológicos que evoca.
Agora já viu, certamente, onde estão os erros: não se diz «admoestar uma entidade ou situação», diz-se «admoestar alguém», ou seja, «repreender ou advertir alguém»; por seu turno, profetizar é sinónimo parcial de anunciar, prever, prometer, mas usa-se em contextos que aludem a aspectos divinos ou sobrenaturais.
Erros deste tipo, os erros semânticos, são em geral menos notados e, talvez por isso, mais desvalorizados face a erros de ortografia, de flexão ou de derivação da palavra — que, diz-se, põem em perigo a identidade da língua. Porém, os erros semânticos podem pôr em perigo a inteligência e a identidade dos falantes da língua — e não há língua sem falantes.
Imaginemos que prometer passava a ser substituído indiscriminadamente por profetizar. Imaginemos que, em vez de «José Sócrates visitou Aljustrel e prometeu "um futuro radioso e sustentado à mina, aos seus trabalhadores e às populações" (Público, 17/11/08)», tínhamos «José Sócrates profetizou um futuro radioso…». Parece só uma imprecisão, mas não é: como uma acção profetizada nunca tem um tempo limite para se realizar, nunca se poderia acusar Sócrates de ter faltado à verdade.
in Sol de 29 de Novembro de 2008, na coluna Ver como Se Diz.