A patologia da "pleonasmite" neste texto do autor, reproduzido do suplemento P3 do jornal Público, do dia 4 de agosto de 2013. Em baixo, assinalam-se algumas notas sobre o que não corresponde, propriamente, a pleonasmos.
Todos os portugueses sofrem de pleonasmite, uma doença congénita para a qual não se conhecem nem vacinas nem antibióticos. Não tem cura, mas também não mata. Mas, quando não é controlada, chateia (e bastante) quem convive com o paciente.
O sintoma desta doença é a verbalização de pleonasmos (ou redundâncias) que, com o objectivo de reforçar uma ideia, acabam por lhe conferir um sentido quase sempre patético.
Definição confusa? Aqui vão quatro exemplos óbvios: «Subir para cima», «descer para baixo», «entrar para dentro» e «sair para fora».
Já se reconhece como paciente de pleonasmite? Ou ainda está em fase de negação? Olhe que há muita gente que leva uma vida a pleonasmar sem se aperceber que pleonasma a toda a hora.
Vai dizer-me que nunca «recordou o passado»[1]? Ou que nunca está atento aos «pequenos detalhes»? E que nunca partiu uma laranja em «metades iguais»? Ou que nunca deu os «sentidos pêsames» à «viúva do falecido»?
Atenção que o que estou a dizer não é apenas a minha «opinião pessoal». Baseio-me em «factos reais» para lhe dar este «aviso prévio»[2] de que esta «doença má» atinge «todos sem excepção»[3].
O contágio da pleonasmite ocorre em qualquer lado. Na rua, há lojas que o aliciam com «ofertas gratuitas». E agências de viagens que anunciam férias em «cidades do mundo»[4]. No local de trabalho, o seu chefe pede-lhe um «acabamento final» naquele projecto. Tudo para evitar «surpresas inesperadas» por parte do cliente. E quando tem uma discussão mais acesa com a sua cara metade, diga lá que às vezes não tem vontade de «gritar alto»: «Cala a boca!»[5]?
O que vale é que depois fazem as pazes e vão ao cinema ver aquele filme que «estreia pela primeira vez» em Portugal.
E se pensa que por estar fechado em casa ficará a salvo da pleonasmite, tenho más notícias para si. Porque a televisão é, de «certeza absoluta»[6], a «principal protagonista» da propagação deste vírus.
Logo à noite, experimente ligar o telejornal e «verá com os seus próprios olhos» a pleonasmite em directo no pequeno ecrã. Um jornalista vai dizer que a floresta «arde em chamas»[7]. Um treinador de futebol queixar-se-á dos «elos de ligação» entre a defesa e o ataque. Um «governador provincial»[8]dirá que gere bem o «erário público». Um ministro anunciará o reforço das «relações bilaterais entre dois países». E um qualquer «político da nação» vai pedir um «consenso geral» para sairmos juntos desta crise.
E por falar em crise! Quer apostar que a próxima manifestação vai juntar uma «multidão de pessoas»?
Ao contrário de outras doenças, a pleonasmite não causa «dores desconfortáveis» nem «hemorragias de sangue». E por isso podemos «viver a vida»[9] com um «sorriso nos lábios»[10]. Porque um Angolano a pleonasmar, está nas suas sete quintas. Ou, em termos mais técnicos, no seu «habitat natural».
Mas como lhe disse no início, o descontrolo da pleonasmite pode ser chato para os que o rodeiam e nocivo para a sua reputação. Os outros podem vê-lo como um redundante que só diz banalidades. Por isso, tente cortar aqui e ali um e outro pleonasmo. Vai ver que não custa nada. E, «já agora»[11] , siga o meu conselho: não «adie para depois» e comece ainda hoje a « encarar de frente» a pleonasmite!
Ou então esqueça este texto. Porque, afinal de contas, eu posso estar só «maluco da cabeça»[12].
Notas
[1] «Recordar/lembrar o passado»: apesar de recordar e lembrar se referirem sempre a fazer voltar à memória factos necessariamente passados, a expressão não é condenável, porque pode significar o mesmo «falar do passado», «fazer um balanço do passado pessoal», «trazer à memória factos passados que estavam menos presentes», e está até atestado em dicionário (cf. Dicionário Houaiss, s.v. lembrar).
[2] «Aviso prévio»: é certo que um aviso é por definição prévio à situação a que se refere, mas há casos em que o aviso é prévio porque decorre de certas disposições legais do mundo do trabalho (cf. Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, disponível na Infopédia).
[3] «Todos sem exceção»: compreende-se que o valor de quantificação universal já exclua qualquer exceção, mas «sem exceção» pode ocorrer de modo enfático de pois de vírgula: «Têm de comparecer todos, sem exceção».
[4] «Cidades do mundo»: não é um pleonasmo, porque num programa de férias podem incluir-se vistas a diferentes cidades espalhadas pelo mundo.
[5] «Cala a boca!»: é literalmente uma expressão pleonástica usada num nível de língua familiar, como forma de verbalizar irritação; mas não se justifica a sua rejeição, a não ser pelo motivo de não ser a melhor maneira de tratar um interlocutor.
[6] «Certeza absoluta»: coloquialmente, o pleonasmo pode ser expressivo, como é o caso, equivalente a «toda a certeza» em «tenho toda a certeza».
[7] «Arde em chamas»: é pleonástico porque arder já significa «estar em chamas», contudo, este verbo pode também ser entendido como «estar em combustão», fenómeno que pode verificar-se sem a produção de chama; nesse caso, «arder em chamas» é novamente um caso de ênfase que se consagrar como lugar-comum para conferir maior dramatismo à eventual referência a uma situação de incêndio.
[8] «Governador provincial»: pode ser que um governador seja por definição sempre relativo a uma província, mas em contextos que não o angolano há outros tipos de unidades administrativas a que esse cargo pode estar associado; sendo assim, a expressão não é pleonástica.
[9] «Viver a vida»: expressão há muito consagrada como «viver despreocupadamente», «gozar a vida».
[10] «Sorriso nos lábios»: mais que um pleonasmo, um lugar-comum que se afigura como forma de abreviar «ter um sorriso nos lábios», no sentido de «os lábios desenharem um sorriso».
[11] «Já agora»: não é um pleonasmo, mas, sim, uma expressão sobretudo típica do português de Portugal, que é usada como marcador discursivo com o significado de «aproveitando a ocasião».
[12] «Maluco da cabeça»: o mesmo que «doente da cabeça», só se usa no português coloquial num nível de língua familiar.
Texto publicado com o título "E você, já pleonasmou hoje?" no suplemento P3 do jornal Público, do dia 4 de agosto de 2013, escrito conforme a norma ortográfica de 1945.