Sobre a incompatibilidade de registos num mesmo texto noticioso — um artigo de Ana Martins publicado no semanário Sol.
Foi o lead que me despertou a atenção: «As tonalidades plúmbeas do céu não reflectiam mais que o estado de alma das cerca de 150 pessoas…» Estranha erudição para aquilo que, a avaliar pelo título, era tão-só uma notícia: «Assaltante descobriu homem morto» (JN, 24/10/09). Continuei a leitura: a autópsia revelou que o homem já tinha morrido em 2007, sem que nenhum familiar ou amigo tivesse dado pela sua falta. Apesar da golfada literária inicial, a história ficou mal contada: «o homem de 62 anos havia morrido em 2007, tendo permanecido na sua casa…» (tautologia); «um desconhecido alertou os bombeiros desde uma cabina telefónica» (erro de regência: não é «desde», é «a partir» ou «de»); «quando se deparou com cadáver, momificado [sic]» (erro ortográfico: é «mumificado», de «múmia»).
Outro caso: «Quando o trabalho mata» (JN, 25/10/09). O nível de língua do lead é estranhamente promissor — «… chegou ao ponto de haver quem prefira acabar com a vida a laborar sob excruciantes pressões». Consegue-se manter o nível no que toca aos adjectivos (sempre aos pares): «Há uma muticausalidade [sic] que emerge das profundas e rápidas mudanças sociais»; «uma peça insignificante numa poderosa e voraz engrenagem»; «jornadas muito longas e penosas de trabalho». Mas a distinta forma de expressão destoa ao lado da falta de revisão textual (lê-se «Num Mundo cada vez competitivo», quando devia poder ler-se «Num mundo cada vez mais competitivo») e da concordância impossível em «… é uma explicação demasiada simplista».
Percebe-se a necessidade de fugir à cartilha repisada da narrativa jornalística. Mas, antes da fuga, há que dar um passo atrás e fazer alguns exercícios de ortografia e sintaxe. Ler livros também ajuda.
Artigo publicado no semanário Sol, de 31 de Outubro, na rubrica Ver como Se Diz.