Sobre a escrita oralizante numa recensão de cinema — um artigo de Ana Martins no Sol.
A avaliação da qualidade de um jornal, em papel ou online, recai sobre os chamados "textos nobres", textos longos, elaborados sob o peso dos grandes géneros jornalísticos: a notícia, a reportagem e a entrevista.
Depois há os textos mais ligeiros, como os fait-divers ou os anúncios de eventos culturais. Estes textos são textos menores do ponto de vista da relevância social e da exigência cognitiva. Mas tal não quer dizer que possam ser escritos atabalhoadamente.
Um exemplo: um resumo de um filme.
«Mamma Mia! Um musical que inclui canções conhecidas do grupo de música pop sueco os ABBA e conta com a história de uma mãe, Donna (Meryl Streep), que educa a sua filha sozinha, Sophi (Amanda Seyfried), que está prestes a casar-se. Donna precisa superar o facto de que irá ficar sozinha e convida duas amigas especiais para o casamento da filha, do tempo que era vocalista de uma banda (…)» (Expresso > Escape > Cartaz, consultado em 25/09/08).
O que salta à vista é a rajada de "ques": valem-se do que para não ter de fechar a frase e começar uma outra, com reconstituição do sujeito («que inclui… que educa… que está prestes…» ). O que serve também de remendo, para tapar um buraco na sintaxe («o facto de que irá ficar sozinha»).
Mas não há só excessos aqui; há também escassez, por exemplo, de preposições: não se diz «tempo que», mas «tempo em que»; nem é «Donna precisa superar», mas sim «Donna precisa de superar».
Nesta escrita de afogadilho ainda há mais um atropelo: o filme «inclui canções conhecidas do grupo de música pop sueco os ABBA». Teriam os ABBA de estar mesmo senis para já não conhecerem as músicas que eles próprios fizeram… Com a pressa nem houve tempo para dizer o que se queria dizer: que as canções são conhecidas do grande público e da autoria dos ABBA.
Artigo publicado no semanário Sol de 4 de Outubro de 2008, na coluna Ver como Se Diz.