Faz parte da faculdade de linguagem, com que todo o ser humano nasce, a capacidade de combinar um número finito de elementos e produzir um número ilimitado de palavras, frases e expressões. Mais: temos a capacidade de reutilizar palavras já existentes e aplicá-las noutros contextos, para referir novos objectos ou situações. Chama-se a isso "criatividade linguística", não no sentido de originalidade ou imaginação artística, mas num sentido funcional, dado que estas "invenções" têm um propósito: ou cumprem necessidades comunicativas (quando o que se diz está orientado para proporcionar um melhor entendimento das coisas); ou cumprem necessidades estratégicas (quando o que se diz está orientado para obter um dado resultado).
Estas inovações não são obra de um falante isolado, mas — normalmente — de uma comunidade de falantes.
Porém, nos últimos dois anos, tem-se assistido ao facto de o nosso Governo ser directamente responsável por inúmeras criações linguísticas, dando um impulso significativo àquilo que virá a ser a história da língua portuguesa. Começou com a criação da palavra Simplex e passou à gestação incontida de siglas (IVG, GIPS, SASU, SUB, SISI, SIVIC…). Só na semana passada o Governo produziu:
— o Governo Electrónico, que permitirá marcar consultas por via electrónica mas com o mesmo tempo de espera;
— a Loja do Cidadão de 2.ª Geração, em que «o atendimento se fará em função dos acontecimentos da vida de cada um» (palavras do primeiro-ministro);
— a Iniciativa de Segurança Idade Maior, que consistirá na distribuição de telemóveis a idosos sem apoio para comprar óculos que lhes permitam ler nos ditos aparelhos.
A realidade futurada pelo nosso Governo já não cabe no uso regular da língua.
Artigo publicado no semanário Sol de 29 de Setembro de 2007, na coluna Ver como Se Diz