A pergunta do consulente Pedro Teles sobre as dobragens para português do Brasil das telenovelas portuguesas emitidas pela TV brasileira já foi cabalmente respondida pelo meu colega D’ Silvas Filho, que muito prezo e que aproveito para cumprimentar. Mas como ficou por esclarecer o que também era solicitado ao Ciberdúvidas («Já agora, o que acham do trabalho do linguista brasileiro Marcos Bagno?»), e embora saiba pouco da obra, o livro Português ou Brasileiro, um convite à pesquisa já me permitiu identificar no seu autor as mesmas preocupações ou convicções que reconheço noutros linguistas que investigam deste lado do Atlântico.
Realço, por exemplo, o reconhecimento de que nenhuma língua, qualquer que seja a variante ou o dialecto que se fale, é, do ponto de vista científico, mais importante do que outra. Utilizo os termos variante e dialecto com o sentido que a ilustre linguista portuguesa Maria Helena Mira Mateus lhes atribui, no seu livro A face exposta da língua portuguesa:
«… denomino variantes as variedades de uma língua usadas em diferentes países. No interior de cada variante registam-se variedades chamadas dialectos, com estatuto de igualdade do ponto de vista linguístico. Os dialectos podem corresponder a diferentes regiões ou a diversos registos, próprios de distintos grupos socioculturais e socioeconómicos. A escolha de um dialecto para ser utilizado nos meios de comunicação (e geralmente no ensino a nacionais e estrangeiros) e a sua denominação como norma-padrão baseiam-se, é evidente, em razões exclusivamente socioculturais e políticas. No caso de Portugal, a norma-padrão é o dialecto que se fala em Lisboa e Coimbra, no Brasil aceita-se como norma-padrão a fala do Rio e S. Paulo.» p. 17/18
Esta intervenção sociocultural ou política na determinação da norma-padrão, ou, se quisermos, na versão oficial de qualquer língua, é, parece-me, comum em todos os países e sempre produziu fenómenos mais ou menos explícitos de exclusão. Pois não era Tito Lívio condenado pelos seus contemporâneos por manter o sotaque da sua terra natal, Pádua (a patauinitas)? Desconheço até que ponto essa situação é premente no Brasil, mas, a julgar pela popularidade de Marcos Bagno (numa breve pesquisa encontrei na Internet 1087 sítios que se lhe referiam!), deve tratar-se de um verdadeiro problema, que, todavia, por desconhecimento e por respeito, me abstenho de comentar. Limito-me, pois, a salientar alguns dos aspectos em que, do ponto de vista científico, as preocupações do linguista brasileiro são semelhantes às de outros linguistas, para não dizer que são comuns à investigação linguística em geral, que em vez de gramáticas normativas preferem, e produzem, gramáticas descritivas em que os exemplos não são já retirados dos escritores e sim de “corpora” recolhidos a partir do uso que da língua se faz, na variedade que se pretende estudar e descrever. Nesta área, em Portugal, como no Brasil, muito se tem feito. Neste momento há já diversos “corpora” “on-line” que podem ser consultados, por quem sentir curiosidade em o fazer, em endereços como por exemplo o do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa.
Há ainda dois aspectos que Bagno foca no livro que tenho estado a ler e aos quais gostaria de fazer referência. Um deles é-me particularmente caro (não fora eu professora de Língua Portuguesa!) e relaciona-se com o ensino da língua materna. O linguista distingue o saber implícito, inato, do saber explícito, adquirido pelo estudo:
«Falar sua língua materna é uma competência do mesmo tipo de respirar, andar, chorar, espirrar, dormir […]. Escrever de acordo com a ortografia oficial é uma competência do mesmo tipo de dirigir um carro, tocar piano, dançar balé clássico, operar um computador: ninguém nasce sabendo isso, é preciso aprender, treinar, exercitar-se.» p. 30
Tem igualmente ideias muito claras sobre a forma como a aprendizagem deve ser feita:
«Acredito sinceramente que, uma vez alfabetizada, a criança deve, nos sete ou oito anos seguintes, praticar única e exclusivamente duas atividades, no que diz respeito à língua: leitura e produção de texto.» p. 13
Adquirido desta forma o conhecimento básico necessário, é, então, altura de entrar na análise crítica da norma sem que se veja a gramática como um conjunto de preceitos prescritivos, mas sim como um conjunto de possibilidades diversas, justificadas pelo uso que da língua fazem os falantes. Para isso propõe uma estratégia: partir de gramáticas normativas de reconhecido valor e ver em que medida elas contemplam ou não determinadas estruturas que, todavia, são de uso comum. O que propõe, afinal, é fazer, com os alunos, gramática descritiva, permitindo-lhes apoderar-se de todas as especificidades que enriquecem a língua. Devo reconhecer que se trata de uma proposta didáctica muito interessante. Não conheço a realidade do ensino no Brasil. No entanto, transpondo essa proposta para a realidade portuguesa e considerando o percurso de aquisição que propõe: alfabetização, mais sete ou oito anos de treino de escrita e leitura, passando-se de seguida à análise crítica da língua, essa análise só seria feita depois de concluída a escolaridade obrigatória que, entre nós, é de nove anos. Fica, para mim, por resolver uma questão que muito me tem preocupado: que conhecimento explícito da sua língua materna deve o jovem finalista do ensino obrigatório possuir? Saliento que estas reflexões, motivadas embora pela leitura do livro de Marcos Bagno acima citado, nada têm que ver com o seu texto, ou a sua proposta, pois, como já afirmei, desconheço a estrutura do ensino no Brasil.
O outro aspecto que ressalta do seu livro é, apesar do seu tom, por vezes polémico, o reconhecimento do direito à diferença de pensamento e de abordagem:
«…não devemos acusar de “retrógradas”, “reacionárias” ou “preconceituosas” as pessoas que preferirem continuar usando as regras tradicionais. O uso dessas regras mais conservadoras tem que ser encarado como uma opção dentre as várias que o falante pode fazer no momento de falar-escrever. É muito fácil fazer uma lista de motivos mais do que aceitáveis para justificar o uso das regras tradicionais.
[…]
Este aviso é importante para que a gente não caia na tentação de exercer o preconceito ao contrário: estigmatizar e ridicularizar as pessoas que, pelas mais diversas razões, optarem por continuar usando as regras sintáticas tradicionais. Vamos deixar elas falarem e escreverem como bem quiserem, mas, ao mesmo tempo, vamos exigir que elas também nos concedam a mesma liberdade de escolha.» p.67
Com esta última citação de apelo à tolerância escrita pelo próprio Marcos Bagno me abstenho de comentar o estilo de alguns dos textos dele editados em sítios da Internet e acessíveis a quem os quiser ler.
Em síntese, creio que as opções científicas do linguista Marcos Bagno são semelhantes às de outros investigadores da mesma área. Basta folhear as a(c)tas dos congressos da Associação Portuguesa de Linguistas (falando apenas do que conheço) para encontrar textos de autores brasileiros a apresentar as especificidades que caracterizam a variante da língua portuguesa falada no Brasil. Essas especificidades distinguem-na, sem dúvida, da variante falada em Portugal, mas não são tão profundas que anulem o conjunto de semelhanças que tornam possível identificar ambas as variantes como partes integrantes de uma só língua. Aliás, Marcos Bagno não contraria esse facto! Creio também que, no Brasil como em Portugal, a norma-padrão, seja ela qual for, se torna um objectivo a atingir por questões de prestígio linguístico, mas sobretudo social.
Gostaria ainda de prestar a minha homenagem a alguns gramáticos, que, contrariamente ao que possa transparecer dos textos de Marcos Bagno que li, fizeram um trabalho tão sério quanto lhes foi possível, tendo em conta as condições em que trabalharam. Recordo, como exemplo, o rigor da descrição dos pontos de articulação das consoantes feita por Fernão de Oliveira em 1536 e cito a descrição da pronúncia de duas letras, a partir de um exemplar fac-similado. A responsabilidade da ortografia é, pois, minha:
«A pronunciação da letra d deita a língua nos dentes de cima com um pouco de espírito.
[...]
… A pronunciação do l lambe as gengivas de cima com as costas da língua achegando as bordas dela aos dentes queixais…»
Além do pitoresco, há algum rigor na descrição feita, até na identificação das consoantes sonoras [com espírito], que a moderna tecnologia não desmente, apenas completa.
Cf. Carta Aberta a Marcos Bagno