1. Uma questão de género
Quando vagueamos numa livraria e somos levados a pegar num livro, procuramos no paratexto, mais ou menos inconscientemente, o género ou tipo textual.
Longe de Manaus tem uma nota prévia, colocada mesmo antes da epígrafe: "Um romance policial, como se sabe, tem as suas regras. Este não tem."
Ora isto é uma contradição: as regras de um romance policial são regras constitutivas de género. Se este romance não tem essas regras não é um romance policial.
Mas então perguntamos: porquê a invocação do policial nessa nota prévia?
Em primeiro lugar, há um crime e um processo de investigação. Por conseguinte, está presente o universo de referência da criminologia, o contexto geral de referenciação de objectos e situações pertencentes à área da investigação policial. Temos, então, palavras e expressões como:
mas também:
"contusões", "arranhões", "estrangulamento" (p.159)
"autópsia" (p.160)
"relatórios" (p. 177)
"fotografias da perícia" (p.238)
"rusga" (p.244)
"cadáveres" (p. 271)
"faquista"(p. 364)
"exames tanatológicos" (p.394)
"decúbito dorsal" (p.430)
"Ferida perfuro-contusa" (p. 430)
2. Especificidade do regime narrativo deste romance
Um dos traços centrais da ficção policial é a narração de orientação retrógrada: as movimentações e decisões do inspector/investigador são colocadas no presente e a partir deste presente vão partir evocações de acções dos agentes directos ou indirectos do crime. Estas acções estão situadas no passado. O narrador pode coincidir com uma personagem (o narrador homodiegético, para usar a terminologia da análise estrutural da narrativa) ou ser uma entidade não personificável, acima da consciência de qualquer personagem, mas sem carácter omnisciente. Note-se que uma regra básica do policial está em impedir que o leitor saiba mais do que o detective, justamente porque só assim há suspense.
Mas em Longe de Manaus o narrador funde-se na consciência de cada personagem, a que geralmente é dedicado um capítulo integral: isso acontece com Jaime Ramos, primordialmente, mas também com José Corsário e com Helena e Daniela. Outras vezes o narrador é uma entidade difusa e ficamos sem saber ao certo se as informações disponibilizadas emanam de alguma personagem. Veja-se, a título de exemplo, a ambiguidade que ocorre na transição do capítulo 14 para o 15: no capítulo 14, é Ramiro que fornece as informações sobre o passado africano de Portocarrero; no 15, esse relato prossegue como se não houvesse ninguém a proferi-lo, sem indicações quanto à presença ou identificação do sujeito da enunciação.
Não há aqui nada de narrativa póstuma, de reconstituição de factos, a cargo de um narrador homogéneo. Pelo contrário, o discurso avança através de constantes monólogos interiores, com diversos graus de interferência por parte do narrador.
Este regime enunciativo heterogéneo é secundado por numerosas instanciações discursivas: há vários pontos de partida temporais e espaciais; há vários "eu-tu-aqui agora". Não há só um presente, uma só actualidade (que seria grosso modo o tempo pós-crime) mas sim diferentes actualidades, diferentes projecções de momentos actuais. Esta técnica, aliás, reconhecida do romance existencialista e pós-moderno, é assinalada pelo recurso recorrente a deícticos (tempos verbais da série do presente, advérbios de tempo e espaço) que não apontam nem para o tempo nem para o espaço do processo de investigação do crime.
3. Referenciação do tempo e do espaço
Os tempos onde se situa o narrador são de diferente ordem:
" e sentiu que a hora de recordar a conversa de Corsário das Neves tinha passado. Mas ali, a caminho de São Paulo, foi a primeira imagem que veio ter com ele (...) José Corsário das Neves contara-lhe coisas que sabia." (...) Jaime Ramos acendera um robusto quando chegara ao Bonaparte e reacendera-o agora (...) (p. 229)
• podem ser tempos com um distanciamento de 30 anos (2004 ?1973):
"O dia caía redondo sobre a praia, lá iam as pretas muito juntas, rindo à beira da água (...) (p.74)
"Alferes Jaime da Fonseca Ramos, dando costas ao capitão e encaminhando-se para a proa do Diogo Cão com saudades da terra, não as mesmas que tem agora, quando caminha pelo molhe (...)" (p.76)
As reinstanciações espaciais são também abundantes:
a) Guiné
b) Luanda
c) São Paulo
d) Rio
e) Manaus
No que diz respeito à referenciação do espaço, é importante de assinalar o recurso a descrições definidas na abertura de capítulos, especificamente, a presença de nomes comuns antecedidos de artigo definido, determinante possessivo ou demonstrativo. Ora, estas descrições definidas dão como identificável pelo leitor os objectos e espaços referenciados. Se esta operação é realizada logo na abertura de um capítulo, há um efeito de imersão imediata do leitor numa situação nova.
" Aquelas mesas, Jaime Ramos conhecia aquelas mesas. E conhecia aquela luz. Mesas e luz, e inox, e instrumentos, e o cheiro." (abertura do cap. 30, p. 165)
" Aquele ruído, Jaime Ramos não o esqueceria tão cedo." (abertura do cap. 46, p. 263)
"Há quantos anos conhecia este bar?" (abertura do cap. 37, p. 206)
Algo de idêntico acontece na referenciação de pessoa. O leitor, ao iniciar um capítulo, é muitas vezes defrontado com uma personagem apenas pronominalizada, o que o obriga a uma inclusão total num contexto sem antecedente no capítulo anterior.
"Era uma casa de dois pisos, mais um cravado na rocha, em baixo, de tijolo amarelo (...) Um ar irrespirável ele lembrava-se (...)" (abertura do cap. 26, p. 146)
" Ela gostaria de saber com que frequência chove no Rio nesta altura do ano." (abertura do cap. 49, p. 293)
Esta proliferação de tempos e espaços exige do leitor um trabalho esgotante de relocalização e de reconstituição do contexto da acção que o distrai da procura do assassino e o dispersa pelas diferentes biografias e reflexões de ordem social e existencial. Veja-se a profundidade psicológica que adquirem personagens como Helena, Daniela, José Corsário, Osmar e, inclusivamente, o homem que depõe Shirlei no seu leito de morte.
4. Hibridismo enunciativo
Excluindo Jaime Ramos, aquelas personagens que são fruto de um maior trabalho de construção de carácter são Helena e Daniela.
Nos capítulos em que estas duas personagens entram em cena, o narrador ora relata factos objectivamente, ora assume a perspectiva da personagem, ora faz da personagem fonte de elocução directa. Este regime enunciativo - aliás, associável ao discurso indirecto livre - permite ao leitor aceder directamente à consciência da personagem na situação simultânea das suas reflexões, pensamentos e sentimentos.
Este regime é marcado pela presença de:
(i) Construções oralizantes de terceira pessoa
"Ah, ela gostara sempre de homens mais velhos (...)" (p.66)
"Ela gostava de Raí, sim." (p. 70)
"Era o português, sim, ao volante de um carro (...)" (p. 71)
(ii) Contiguidade de deícticos de sistemas temporais distintos
"Edilson explicara quase tudo o que é necessário fazer durante o dia de hoje (...)" (p. 65)
" O cigarro terminava e ela levantou-se, já não vinha ao jardim da Praça Buenos Aires há meses."(p. 71)
(iii) Modalização
"(...) podia lê-lo daí a uma hora ou duas, sentada à mesa da cozinha (...) podia ver as árvores da rua da Consolação (...) poderiam sair (...)" (p.89-90)
"(...) precisava falar com Helena, (...)" (p. 109)
O curioso é que é neste contexto - o contexto de reprodução (e demonstração encenada de uma consciência) - que tem lugar a activação da variedade do português do Brasil. Helena e Daniela são brasileiras, vivem em São Paulo, e a transparência daquilo que sentem e pensam, assume forma, verosimilmente, em português do Brasil.
É certo que há ocorrências lexicais e sintácticas desta variedade do português em capítulos que não dizem respeito a estas duas personagens. Quando assim é, essas ocorrências dão-se ou em discurso directo ou nos capítulos em que Jaime Ramos se desloca ao Brasil e não é de estranhar, então, a referenciação de instituições e locais que recebem designações específicas do sistema e modos de vida brasileiros: "delegacia"; "delegado"; "lanchonete".
Em todo o caso, são ocorrências lexicais esporádicas, ao passo que na construção das personagens Helena e Daniela as ocorrências são abundantes e diversificadas.
5. Variedade do português do Brasil
Palavras denotativas de realidades específicas do Brasil | Contrastes preferenciais | Empréstimos | Etimologia |
"o pampa" "gaúcho" (p.330 "a cuia de chimarrão" "bombachas" "estanceiro" (p.331) "boto" (p.309) |
"ônibus" "quadras" "banheiro" "suco" (p. 63) "torcedora" (p. 64) "terno" "açougue" (p. 65) "chope" "caipira" "babás" (p. 70) "balanços" (p.90) "time" (p. 91) "fuscas" (p. 96) "aposentadoria" (p.99) "policial" (214) "xícara" "manobristas" (p. 221, 291) "engraxates"(293) "garoa" "sebo" (p. 294) "camiseta" "camelôs" (229) "dirigir" (carro) (p. 300) "babaca" "baseado" (p. 332) |
"a box" (p. 63) "cavanhaque" (p. 215) (empréstimo a partir de um antropónimo Eugéne Cavaignac: general francês que usava barba crescida e aparada em ponta no queixo.) "maillot" (maiô) (p. 90) "garçom" (p. 295) "containers" (p.330) "suéter" (p. 96) |
— do quimbundo: "maconha" (p. 95) " cacimba" (p.10) — do tupi: "cuia"(p. 331) "muriçocas" (espécie de mosquito( (p. 13) |
Activação preferencial da próclise | Ausência de artigo | Preferência por formas não reflexas do verbo | Diferenças na selecção de preposição |
"O seu pai a levara ..." "Se apaixonara por Raí" (p.64) "A princípio lhe emprestara livros... " (p. 105) "O pai lhe deixara..." (p. 213) |
"Ela seguia suas jogadas..." (p. 64) "Suas perguntas eram delicadas..." (p. 215) |
" lembrava da primeira vez..." (p. 105) "sentava na cozinha..." (p. 212) |
"Olhou no espelho..." (p. 90) |
Diferenças de género | Activação preferencial do gerúndio | Recursividade do diminutivo |
"uma ducha" (p.63) "um misto quente" (p.63) "um gin tônica" (294) |
"ele sorrindo e afastando a cadeira, preparado para se levantar mas esperando ainda qualquer coisa..." (p.220) "Daniela ficou vendo Walmir partir..." (p.398) |
"barzinho" (p.71) "menininha" (p.91) "sacaninha" (p.97) |
Grafia | Fonia |
— uso do trema: "tranqüilidade" (p. 63) "tranqüilo" (p. 214) "freqüência" (p.293) — acento circunflexo a marcar fechamento de vogal: "ingênuas" (p.96) — afectação de sequência consonantais: "teto" (p. 95) "deceção" (p.104) "insetos" (p.11) "objetos" (p. 217) "ato" (p. 312) — outras grafias: "xampu" (p. 90) |
— articulação "...dobrava até os erres quando falava..." (p. 70) — articulação e entoação: "Acento caipira, dobrando os erres, subindo e descendo como uma pauta de sinfonia..." (p. 90) |
6. Valorização manifesta da língua portuguesa
Percorrem o romance alguns "ralhetes" na medida em que se criticam más práticas no uso da língua por parte quer de advogados, quer de polícias.
"E tinha uma coisa rara, inspector: tinha boa gramática. Isso espanta-me muito hoje em dia." (p. 62)
"Jaime Ramos teria o caminho aberto, mas pouparia Portocarrero à humilhação de ser um advogado como os outros - podendo ser interrogado, ouvido nos autos, indicado como suspeito, ter de atender os telefonemas de agentes da polícia, cheios de má gramática (...)" (p. 113)
"Jaime Ramos admirava profundamente os advogados que falavam com uma gramática no cérebro, dispondo as palavras em camadas, organizadas por grau de dificuldade em função do fio da navalha em que se encontravam." (p.115)
"Meu português é bom, Daniela. Anotei sem erros" (...) "Ainda bem que seu português é bom, Walmir. Erro ortográfico é feio." (p. 220)
Mas também há a crítica a um uso pernicioso da língua no plano discursivo, a crítica à retórica balofa que tolhe o raciocínio e faz tropeçar a lógica.
"Este país é muito correto em tudo, é um país que gosta de falar e de ouvir-se. Frases cheias de advérbios. Verbos sonantes. Temos grandes poetas parnasianos, o nosso barroco é quase tão bom como o vosso, gastamos em gramática o que nos falta em verdade e clareza." (p. 277)
Para além da crítica, há a destacar a notação comovida da dimensão e diversidade da comunidade de falantes da língua portuguesa:
"Nessa noite relembraria o momento: ao olhar pela janela do avião reconheceu a mesma língua numa terra distante." (p.227)
"...e somente numa semana a sua língua mudara embora fosse a mesma. Essa língua mais sonora, cheia de vogas abertas e de alegrias desconhecidas, falada por africanos e por árabes, por homens como Padilha, brancos e pálidos, ou como Osmar, morenos e irónicos, sorridentes, ou pelo empregado oriental do bar do hotel." (p.362)
* Texto-base sobre o tema de emissão do programa Páginas de Português do dia 8 de Outubro de 2006.