Quando falamos na defesa da língua portuguesa teremos, antes de mais nada, de equacioná-la em função da Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa, uma vez que só através dela somos a quinta língua mais falada no mundo.
Como afirma Eduardo Lourenço, «uma língua não é uma realidade com futuro, nem sequer presente, por direito divino. É um ser espiritual vivo, intrinsecamente mortal, no meio de outras línguas, expressão de históricas vontades de poderio, de sedução, de afirmação identitária, em estado de guerra cultural» (in Nau de Ícaro – Imagem e Miragem da Lusofonia, p.188) .
Assim, o projecto da lusofonia a defender terá de ser feito com respeito pelos que connosco partilham o uso da língua portuguesa.
Claro que nós, portugueses, como detentores da língua matricial temos a tendência para nos arrogar, por direito, donos da língua, o que, diga-se em abono da verdade, só nos poderá fazer recuar a um nacionalismo absurdo, ignorando o que representam os contactos civilizacionais, o meio ambiente e as várias aculturações na evolução das sociedades e das línguas, deixando-nos petrificar dentro de um conceito de língua ligado unicamente ao de pátria.
Felizmente que Portugal não tem necessidade de se escudar nesse expansionismo da língua portuguesa pelo mundo, querendo ainda hoje impor as suas regras, para se afirmar como identidade própria, porque não sofre de qualquer complexo de identidade. Tem-na muito forte e muito antiga. E se nela coube o sonho imperial da aventura e da expansão que o levou aos cinco cantos do mundo e ao contacto com outros povos, colhendo deles muitas das características que passaram a fazer parte da sua própria idiossincrasia, hoje pode e deve olhar esses povos e as suas culturas de uma forma lúcida, revendo-se em algumas das suas particularidades, mas distanciando-se noutras, definindo a diferença. Assim, não desvirtuará o conceito de lusofonia, antes aprenderá a visualizá-lo como algo de enriquecimento, quer ao nível linguístico, quer ao nível ontológico.
O seu estatuto de nação entre outras nações, não fica comprometido. Pelo contrário, cumpre-se na sua singularidade e originalidade. Por isso, Eduardo Lourenço acentua que «é no espaço naturalmente universal de uma língua que cada um tem a sua mais alta e a única maneira aceitável de ter pátria, não como mero instrumento de comunicação entre gente da mesma língua, mas como lugar onde a particularidade de um povo se simboliza e vive espontaneamente no universal.»
E conclui: « Nesse sentido, não é Portugal ou os países lusófonos que falam português, é a língua portuguesa que fala Portugal e esses países.» (in op. cit. p.185)
A partir desta reflexão, a defesa da língua portuguesa só pode ser realizada dentro dos parâmetros identificadores da nossa vivência, considerando sempre a língua como um organismo vivo sujeito a evolução, a influências e à expressão estética de acordo com o seu tempo, obedecendo à mesma lei da vida.
José Saramago no texto com que reabriu o Ciberdúvidas da Língua Portuguesa adverte: «Aliás, a frente principal da luta pela sobrevivência da língua portuguesa está no próprio país de origem: se nele se perder, há muitas probabilidades de que venha a perder-se nos outros lugares do mundo que a falam.»
Esta atitude, porém, não admite a permissividade em relação a uma globalização imposta por poderes monopolistas ou modismos gratuitos que desvirtuam a própria concepção da palavra e os seus valores etimológicos.
O critério nacionalista aplicar-se-á aí com toda a legitimidade na defesa da língua contra a intromissão de termos estrangeiros que pervertam e firam a índole nacional.
A língua portuguesa é suficientemente rica, comportando, na maior parte dos casos, o equivalente nacional para o estrangeirismo. É igualmente maleável, permitindo quer o seu aportuguesamento, desde que seja feito em bases correctas, quer a construção de um neologismo legitimamente português.
O importante é, deste modo, obstar à invasão sistemática e cada vez maior do estrangeirismo, sobretudo de origem inglesa, seja por via das novas tecnologias, seja por via da dita globalização que não é mais do que a sujeição ao imperialismo anglo-saxónico.
No entanto, quando a palavra é internacional e se integra naturalmente na nossa língua e o seu uso corresponde a uma necessidade cultural, seria um absurdo narcisismo não aceitá-la. É o caso de tantas palavras estrangeiras que fazem parte do nosso uso e imaginário comuns e que em vários dicionários aparecem já aportuguesadas, embora algumas delas não obedeçam a critérios idênticos e coerentes de formação.
O mesmo bom senso e equilíbrio se deve colocar em relação a certas transgressões de carácter literário que vêm enriquecer a expressão escrita, conferindo-lhe uma inovação e dimensão estética só possíveis pela pena dos nossos maiores escritores ou dos que não sendo são-no.
Fernando Pessoa, referindo-se à transgressão de natureza estilística, defendia que «a linguagem fez-se para que nos sirvamos dela, não para que a sirvamos a ela.» Sábia afirmação que resume a arte de escrever, a inovação e a originalidade e, frequentemente, a luta corpo a corpo com a palavra.
Está aqui implícita a crítica à crítica dos que, escravos da gramática, se distanciam, porém, das vertentes estilísticas e da modernidade do texto, do qual a metáfora, o neologismo morfo-sintáctico ou semântico, servindo a ironia ou a estética textual, são o apanágio da leitura literária.
É preciso entender que quem realiza com consciência a transgressão ou o desvio com fins puramente literários tem de fatalmente conhecer e com profundidade os manejos da língua portuguesa. Saramago, por exemplo, quando se iniciou numa escrita transgressora das regras de pontuação, tinha já publicado várias obras, cumprindo escrupulosamente as regras gramaticais. Foi preciso toda uma preparação anterior para assumir um discurso sem as bengalas onde se apoiar, substituindo-as por uma exemplar colocação do ritmo, da técnica do corte, próprios da oralidade, conferindo ao texto escrito uma força capaz de ultrapassar o convencional, mantendo intacta a comunicação.
Quando um escritor constrói um neologismo, ele conhece intimamente a etimologia das palavras, amputando-as e cruzando-as ou associando os sentidos de uma forma, por vezes genial, sem quebrar as normas da derivação ou da composição. E se o escritor cria neologismos, quebrando a imobilidade da língua, ele é igualmente o seu maior vigilante. Saramago, no texto atrás referido, insurge-se contra o estado actual da língua portuguesa, imputando à escola a culpa da sua degradação, quando esta não cumpre eficazmente a sagrada missão de ensinar a bem ler e escrever. Sobre esta matéria deveras complexa voltaremos a pronunciarmo-nos noutra ocasião, pois por detrás da escola há muitas outras realidades a terem-se em conta que merecem uma justa reflexão.
É, pois, com a consciência de todos estes mecanismos da língua que a Sociedade da Língua Portuguesa se lança na aventura do Ciberdúvidas, destinado a ser um ponto de convergência de várias sensibilidades e competências, procurando dar resposta às dúvidas dos falantes de língua portuguesa nacionais ou espalhados pelo mundo. Por um lado, estimulando o conhecimento e o respeito pelo nosso património comum que é a língua; por outro, estando abertos ao diálogo, à inovação e a tudo o que honestamente contribui para a vivificação e enriquecimento das virtualidades da língua portuguesa.