«Foi você que pediu um bom título?» Intitula-se assim o livro que Dinis Manuel Alves, jornalista, publicou na Quarteto. Não o li nem o vi; soube do iminente lançamento no dia em que um ultimato não britânico me fez saber que teria de entregar esta crónica mais cedo do que julgava possível, por razões técnicas (ou futebolísticas segundo rumores não confirmados mas, se calhar, bem verdadeiros).
A este propósito, lembro-me do prémio recentemente atribuído a Eduardo Lourenço, na 80ª primavera da sua juventude; um dos amigos que foram abraçá-lo na cerimónia da União Latina, no Instituto Camões, apressava-se a sair quando um funcionário (a que dei pronto apoio) o instou a ficar mais uns minutos, para o «cocktail». Um pouco encavacado mas sincero, sussurrou o motivo da pressa: «É que há agora o Real Madrid...»
Contei o episódio a Eduardo Lourenço, sem revelar a identidade do amigo futebolómano (sou firmemente pelo segredo profissional), por calcular que ele achasse graça e porque talvez encontrasse no caso mais um elemento para o estudo da identidade portuguesa.
O futebol é uma sólida obsessão deste povo, que dele apenas momentaneamente se distrai com a pedofilia, os buracos nas ruas e nas estradas, o errático casino lisbonense ou as peregrinações a Fátima e a Felgueiras, agora unidas numa só figura, ausente no país que inventou a telenovela (outro vício nacional) e que a novela reinventou.Acontece que o facto de eu pedir a mim mesmo um bom título não foi ouvido pelas musas.
Foi indeferido sem contemplações nem explicações, como daquela vez em que na tropa pedi autorização para usar bigode, e o pedido, que teria de ser apreciado no Terreiro do Paço, para lá terá ido com a fatal informação «este Comando é de parecer que a presente pretensão não deve ser deferida». Era assim a dureza do Exército (na Armada abundavam barbas e bigodes) mesmo no marcelismo (podem dizer que foi coincidência, mas uns meses após tal violência contra a cidadania deu-se o 25 de Abril de 1974).
Enfim, tudo isto para dizer que as musas, o futebol e mais fraquezas da pátria (além das minhas) e outras tarefas no jornal não me propiciaram um bom título. Se até ao fim dos 6928 caracteres que este computador (um mentiroso) me indica como limite absoluto não surgir um melhor, terei de entrar no momentoso assunto da diciopatia espongiforme bovina.
Porquê «espongiforme»? É melhor não dizer; se transcrevesse na íntegra o que desse vocábulo e sua respeitável família consta do Dicionário Houaiss, versão portuguesa do Círculo de Leitores, no seu Tomo III (o Tomo IV, cujo último verbete é um termo inglês, merchandising - assim mesmo, em itálico - despenhou-se esta tarde na minha mesa), lá se ia grande parte dos caracteres em falta. Posso ter crises de inspiração e de humor ou até intervalos de lucidez, mas batota não faço. E se lhe acrescentasse o que sobre a mesma família de palavras reza o I Volume do Dicionário da Verbo, dirigido pelo doutor Malaca Casteleiro, despachava mais umas boas dezenas de caracteres (e infelizmente não tenho à mão, nem ao pé, os valiosos dicionários de José Pedro Machado).
Consultei-o, claro; jaz numa sala «aqui mesmo ao lado», como se diz nos cinemas, o gabinete do meu camarada Henrique Monteiro, que a ele certamente recorre sem o usar, em casa, como livro de cabeceira. Não se admirem com o termo «camarada». Uma das primeiras coisas que me ensinaram no Exército foi que, fora das escolas civis, «colega» é forma de tratamento apenas aplicada no contexto da mais antiga profissão do mundo (a fórmula pela qual se transmitia este ensinamento era menos rebuscada do que na versão aqui destinada aos leitores do EXPRESSO). O tratamento por camarada usa-se tradicionalmente nos seguintes grupos sociais e socioprofissionais: os partidos socialistas e comunistas, os jornalistas e os militares. Por isso a ditadura portuguesa não pôde proibi-lo. Uma vez, no «foyer» («fuaiê», escreverão alguns) do cinema Quarteto, pouco depois do 25 de Abril (ou do 25 de Novembro?), tive de explicar isso, imaginem, a um oficial do Quadro Permanente.
Estava a tentar conversar com o cavalheiro, e disse-lhe: «Um camarada seu...». Interrompeu-me, encolerizado: «Camarada? Eu não sou comunista!» Lá comecei a tentar explicar-lhe o que atrás comuniquei aos leitores, mas nada entrou naquele ósseo capacete. Fiquei de boca aberta e ainda hoje tenho dificuldade em fechá-la. Julgara ser daquelas coisas que «até um militar entende» (só uso esta expressão, que não perfilho, porque a ouvi, com ironia, a um amigo, militar de carreira, hoje tenente-coronel).
Sempre gostei de dicionários, mas não da ditadura deles. Por isso é bom haver dicionários diferentes, pessoas diferentes, partidos diferentes, clubes de futebol diferentes, autarcas diferentes (isto começa a ser um bocado difícil em Portugal), etc. É o pluralismo. O uníssono pode ser necessário num cântico, mas que não se exclua a polifonia. Querer-se que Portugal e o mundo falem sempre «a uma só voz» é inquietante; além do perigo do «pensamento único», existe o de essa voz ser a de um burro ou a de um sapo (não a de um peixe, que esse não fala, a crer no Padre António Vieira). É bonita a unanimidade (ou quase) em casos como o de Timor, mas dessa vez ninguém nos obrigou e a causa, além de justa, era altruísta. Mas obrigarem-nos a todos a escrever Francoforte, Oxónia, Jérsia e Bagdade, é excessivo. Ainda bem que o Dicionário Houaiss, segundo vários eruditos um dos melhores da nossa língua, regista Bagdad (em vez de Bagdá, que seria de esperar numa obra de matriz brasileira, ou Bagodá, em desuso). Se todos os dicionários grafassem Bagdade, dava vontade de fazer um novo 25 de Abril.
Voltando ao título: «diciopatia»? Se pensarmos no latim «dictio» e na forma «patia», oriunda do grego (não se escrevia assim, claro), será talvez legítima. E «bovina» porquê? Porque os dicionários, tão úteis, podem ser perigosos em manada.
In "Actual", revista do "Expresso" do dia 24/05/2003