Será ilusão de óptica, mas creio que quanto a percentagem de gralhas a Imprensa portuguesa não está na cauda da Europa. Não tenho provas disto, logo não o afirmo; é só uma impressão. Seja como for, o fenómeno é patente e excessivo, indiciando deficiências de formação, fraco profissionalismo, incultura geral e, para sermos generosos, má relação com o oftalmologista. Reflecte duas coisas de que somos acusados: impreparação e baixa produtividade. Depois, há problemas de treino, sensibilidade, cansaço; até alguém atento e sabedor pode deixar passar gralhas das maiores, mesmo que seja seu dever evitá-las (caso dos revisores de jornais ou de livros, pois, a julgar pelo que se lê diariamente, não ocorre a ninguém que as legendas dos filmes mereçam a esmola de alguma revisão).
Actualmente, só fico surpreendido quando encontro uma frase bem redigida ou uma tradução bem feita. Como, porém, muitos leitores podem achar que exagero, aqui deixo uma breve recolha de pérolas de informação e de cultura.
Escrever nomes estrangeiros é um problema clássico. Se a Redacção não tiver (como deve) uma lista disponível para consulta, incluindo nomes tão óbvios como Zbigniew Kazimierz Brzezinski, poderá procurá-los em jornais estrangeiros ou na Internet. Não é aceitável que o "Diário Económico" escreva «Kohfi Annan». Pelo menos, não é essa a grafia em curso na ONU, como se pode ver numa visita à página de Kofi Annan (UN: «The Secretary-General Home Page»). No entanto, assim apareceu (25/9/03) na transcrição do que o Miguel Sousa Tavares dissera na TVI. No mesmo texto lê-se "saiem" (o que é boa pronúncia, mas má escrita) em vez de saem; isto aprendia-se em tempos na instrução primária.
Também não é aceitável que "A Capital" escreva "Berlusconni" em vez de Berlusconi (29/9/03) três vezes, o que não aponta para o efeito conhecido por gralha. Quando se falava mais em Helmut Kohl, tive ocasião de ver em vários jornais, e salvo erro até no EXPRESSO, a grafia "Khol", que por razões misteriosas tantos portugueses entenderam adoptar. Não creio que a Embaixada alemã tenha feito qualquer protesto, mesmo diplomático; já sabem do que a casa gasta. Mitterrand também foi reduzido a "Mitterand" mais do que uma vez, e o modo como os apelidos espanhóis (sim, dessa língua que tantos portugueses imaginam conhecer) são escritos entre nós é conforme à melhor doutrinação liberal (em troca, já me aconteceu ver Balsemão bem escrito em jornais espanhóis).
Passando a outro tipo de substantivos, deparo (e não "deparo-me") no "Público" com isto: «Por trás da plateia, será instalada a 'regi' (...)» (12/9/03). Eis uma extraordinária palavra, que, não lhe bastando ter desfigurado a forma francesa, ainda por cima vem entre aspas... Note-se que até o dicionário Casteleiro da Verbo (pág. 3156), por vezes suspeito de se submeter a modas brasileiras sem escala em Paris, regista na 1ª edição o termo régie.
Formas como "tivémos", procurando ingenuamente indicar a fonética, não deviam ser usadas no "Diário de Notícias". No entanto, lá estava (8/9/03), no mesmo texto em que se observava uma moda que hoje alastra como o fogo: «Tratam-se unicamente de pessoas que têm a garantia que se beberem um copo a mais (...)». É certo que era uma entrevista, mas os jornais (ao contrário da Rádio ou da TV) devem corrigir erros de português de quem entrevistam, salvo se a finalidade do trabalho for mostrar o estado a que chegou o uso da língua portuguesa. O "tratam-se" em vez de trata-se (que se refira a n pessoas não faz com que o verbo passe ao plural) alastrou a quase toda a Imprensa. Como é que isto se diz em jornalês? «Alastrou-se». Por exemplo (mau), no "Público" (19/8/03), «o fogo (...) que rapidamente se alastrou a toda a casa (...)»; aquele 'se' está a mais, portanto não presta. Ou ainda: «Mas para que o mercado de trabalho se alastre (...)», dizia, no século passado, um actor na RTP2 (14/2/1999).
As influências brasileiras não provêm infelizmente dos clássicos, mas dos 'media', a começar pelas telenovela s e a acabar também nelas, passando pelas mesmas (e ainda pela terminologia informática, com estranhas traduções do inglês). Num canal não brasileiro, o História, ouvi: «Um policial estadual disse-me: finalmente apanhámos-te» (locução 'off' num documentário, 5/3/03). E num filme canadiano exibido na TVI (28/2/03) li numa legenda: «(...) quer que eu vá ter com ele à delegacia amanhã de manhã». Alguém traduziu «police station» pelo termo brasileiro «delegacia», num estranho desconhecimento da palavra esquadra. Isto lembra-me esta intrigante construção: «O debate ficou delegado para os peritos» (legenda num documentário na RTP2, 28/2/03). Não sendo português do Brasil nem da Europa, o que são esses casos de polícia? Sem invocar as crises da família e do sistema de ensino, acho que a origem do fenómeno está basicamente em que as televisões não contratam pessoas mais competentes. Milhões de portugueses sabem o que é um polícia e que entre nós «policial» é adjectivo, aplicável ao romance po licial (ao qual podemos chamar apenas «o policial»). Por que motivo não contratam os mais competentes? À primeira vista, por incompetência de quem as dirige, pelo menos nos sectores obrigados por dever de serviço público a conter a asneira.
Por falar em copos, a SIC Radical pôs Lorraine Bracco a dizer: «Eu cá sou mais da tequilha» (legenda, 1/7/03). Embora radical, não está só; já li o mesmo noutros sítios. O disparate é flagrante, pois em espanhol diz-se «tequila» e não «tequilla». Nesse programa (o divertido «show» de Jon Stewart), também vinham mal escritos nomes de cocktails, como o "mojito". Voltando ao português, tenho dúvidas sobre a legitimidade da palavra «microndas». Não a adoptam o dicionário Casteleiro nem o Universal da Texto Editora, entre outros; escrevem microondas, e isso está mais próximo do modo como nomeamos o electrodoméstico, não acham? Não foi esse o entendimento do EXPRESSO (2/8/03) ao infligir o "microndas" à crónica do Carlos Medina Ribeiro.
Outra família de dislates não tem que ver com ortografia nem com sintaxe, mas com desconhecimento de outras realidades. Ouvi na SIC Notícias (25/9/03): «(...) a situação há muito que é conhecida, tanto por civis como por bombeiros». Como é que um jornalista ignora que os bombeiros não são militares (e que nem todas as pessoas fardadas são soldados)? Quanto aos militares, nem sequer recebem instrução e meios para apagar fogos em casa (veja-se o caso da Tapada de Mafra, ao lado da Escola Prática de Infantaria).
Em matéria de língua e de linguagem, os 'media' estão a bater no fundo. Desde que li num diário de referência (nem digo qual, tal a vergonha editorial desta situação linguística) uma notícia sobre «dois homens do sexo masculino», já acredito em tudo.
Cf. Apita o comboio