«Tantas vezes pensada como morando no passado, África vive no futuro linguístico: quase todos os africanos são multilingues», escreve o escritor moçambicano Mia Couto, em artigo publicado na revista África XXI de Maio de 2009, que aqui se transcreve, coma devida vénia.
Na bela cidade de Durban, falávamos eu e outros escritores africanos da surpresa do modo como, no Zimbábue, tantos ainda apoiam Robert Mugabe. Havia, no grupo, escritores de vários países de África. Aproveitámos o que melhor há nas conferências literárias: os intervalos. A nossa perplexidade não se limitava ao caso zimbabuano. Como é que povos inteiros, em outras nações, se acomodaram perante dirigentes corruptos e venais. De onde nasce tanta resignação?
Uma das razões dessa aceitação reside na forma como as línguas se relacionam com conceitos políticos da modernidade. Por exemplo, um zimbabuano rural designa os seus líderes nacionais como entidades divinizadas, fora das contingências da História e longe da vontade dos súbditos. O mesmo se passa em quase todas as línguas bantas.
A questão pode ser assim formulada: como pensar a democracia numa língua em que não existe a palavra democracia? Num idioma em que presidente se diz Deus? Nas línguas do Sul de Moçambique, o termo para designar o chefe de Estado é hossi. Essa mesma palavra designa também as entidades divinas na forma dos espíritos dos antepassados, traduzindo uma sociedade em que não há separação da esfera religiosa.
Parece uma questão de ordem linguística. Não é. Trata-se do modo como se organizam as percepções e as representações que uma sociedade constrói sobre si mesma. A sacralização do poder não pode casar com regimes em que se supõe que os líderes são escolhidos por livre votação. Numa sociedade em que os súbditos se convertem em cidadãos.
Esse assunto escapa muitas vezes a quem se especializou em organizar seminários sobre cidadania e modernidade em África. A problemática política é vista, quase sempre, na sua dimensão institucional, exterior à intimidade dos cidadãos. Quando o participante do seminário explicar à sua comunidade o conteúdo dos debates, usará a sua língua materna. E sempre que se referir ao presidente, ele fará uso do termo deus. Como pedir uma atitude de mudança nestas circunstâncias?
O que se pode fazer? Será que os falantes destas línguas estão condenados à imobilidade por causa desta inércia linguística? Na realidade, existem tensões entre a lógica interna de algumas destas línguas e a dinâmica social. Estas tensões não são novas e sempre foram resolvidas a favor da adaptação criativa e da criação de futuro.
Já no passado, as culturas africanas (e todas as outras em todos os continentes) tiveram de se moldar e se reajustar perante aquilo que surgia como novidade. Eu mesmo testemunhei o modo veloz como as línguas moçambicanas se municiaram de instrumentos novos, roubando e apropriando-se de termos não próprios. Com o uso generalizado, esses termos acabaram indigenizando-se. Sem drama linguístico, sem apoio de academias nem de acordos ortográficos, os falantes dessas línguas "pediram" de empréstimo palavras de outros idiomas. Moçambique é, nesse domínio, um caldeirão dessas mestiçagens.
Os nacionalistas africanos não ficaram à espera de que um vocabulário apropriado nascesse nas línguas maternas dos seus países. Eles começaram a luta, e essa mesma dinâmica contaminou (mesmo com uso de termos e discursos inteiros em português) as restantes línguas locais.
Tudo isto nos traz a convicção do seguinte: a capacidade de questionar o presente necessita de língua portadora de futuro. A necessidade de sermos do nosso tempo e do nosso mundo exige línguas abertas ao cosmopolitismo. África – tantas vezes pensada como morando no passado – já está vivendo no futuro no que respeita à condição linguística: quase todos os africanos são multilingues.
Essa disponibilidade é uma marca de modernidade vital. O destino da nossa espécie é que cada pessoa seja a humanidade toda inteira.
África XXI de Maio de 2009