« (... ) As Novas Cartas Portuguesas foram traduzidas e publicadas na Europa e nos Estados Unidos, tendo a cobertura do processo pelos media estrangeiros provocado uma onda internacional de protesto inédita (...).»
«Por vezes, parece-me que uma epidemia pestilencial atingiu a humanidade na faculdade que mais a caracteriza, isto é, no uso da palavra, uma peste da linguagem que se manifesta como perda de função cognoscitiva…»
Italo Calvino, Seis propostas para o próximo Milénio, ed. Teorema, 2007
As palavras de Italo Calvino fazem mais sentido do que nunca no mundo em que vivemos. Um reino que vai sendo cada vez mais dominado por uma inteligência e uma humanidade artificiais, onde o pensamento crítico se tornou algo raro, a ser abatido pelos mais diversos poderes. Há umas semanas, veio a lume a notícia da dificuldade que muitas crianças em idade escolar evidenciam em formar, oralmente, uma frase completa. E neste contexto, num ano em que se comemoram os cinquenta e um anos do 25 de Abril, poucos meses passados do falecimento de Maria Teresa Horta, autora, juntamente com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa das Novas Cartas Portuguesas, publicadas em 1972, faz sentido relembrar o excelente filme /documentário, realizado por Luísa Sequeira e por Luísa Marinho intitulado O que podem as palavras, galardoado com o «Prémio de Melhor Filme Português» no Doc Lisboa de 2022. Este trabalho, que deveria ser visto nas escolas secundárias e universidades, foi realizado ao longo de vários anos, integrando entrevistas feitas pela saudosa Ana Luísa Amaral às três Marias. Foi há um ano que o vi pela primeira vez, num Colóquio Internacional comemorativo dos cinquenta anos do 25 de Abril, organizado pelo Centro de Estudos Portugueses da Universidade de Dartmouth, nos Estados Unidos, no qual a Revolução dos Cravos foi analisada e discutida sob múltiplas perspectivas, provenientes de vários cantos do mundo. Sem dúvida, uma experiência marcante vivida ali, naquela distinta sala do Whale Museum, o Museu Baleeiro de New Bedford, entre os esqueletos de Moby Dicks reais. E tudo isto, transportou-me à Universidade de Macau, onde leccionei, durante mais de dez anos, o impacto de As Novas Cartas Portuguesas em algumas alunas do Mestrado e Doutoramento em Estudos Literários. Embora, por vezes, as confundisse o hibridismo da obra, impressionava-as a lição de liberdade que sentiram tão actual, a dar voz a situações conhecidas, vividas e silenciadas de violência contra as mulheres, de opressão. Uma opressão que carece ainda da coragem de gente como as autoras das Novas Cartas, julgadas por atentado à moral – um caso convertido na Primeira Acção Feminista Internacional. Isto porque, As Novas Cartas foram traduzidas e publicadas na Europa e nos Estados Unidos, tendo a cobertura do processo pelos media estrangeiros provocado uma onda internacional de protesto inédita, com manifestações à porta de embaixadas, que atraiu a solidariedade de escritoras como Simone de Beauvoir, Doris Lessing ou Marguerite Duras.
Hoje, acender o poder das palavras veiculadoras de valores de liberdade, de igualdade, de paz, revela-se cada vez mais necessário, perante tantos retrocessos a que assiste, um pouco por todo o mundo, perante a aceitação passiva das maiores barbaridades. Afinal, o que podem as palavras? Podem combater a «peste» referida por Calvino e, através do cinema, da literatura, do teatro, da Arte em geral, rasgar horizontes, estabelecer pontes entre culturas, despertar consciências, pois como escreveu Vergílio Ferreira em Conta-Corrente: «A liberdade começa em saberes o que te oprime. Não bem em haver opressão, mas em reconhecê-la como tal (…) Tu és livre. É, portanto, do teu dever libertares-te.»
Artigo da escritora e professora Dora Nunes Gago, transcrito, com a devia vénia, do Jornal de Letras, n.º 1424, de 30 de abril de 2025.