«Num tempo em que os leitores parecem ser cada vez mais, infelizmente, uma espécie em vias de extinção, importa sublinhar a grandiosidade atribuída ao acto da leitura por [Jorge Luís] Borges.»
«Chega-se a ser grande por aquilo que se lê e não por aquilo que se escreve.»
Jorge Luís Borges
«Ler é ter as chaves mágicas que nos abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas nas quais não teríamos sabido penetrar.»
Marcel Proust
Estas duas epígrafes de Borges e de Proust assomaram-me à mente, enquanto percorria os densos e ricos labirintos de Um lápis no Punho, editado pela Poets and Dragons Society, livro convertido em “biblioteca portátil” de João Ventura – algarvio, «homem de teatro, bibliotecário de paixão, director de revistas, autor de blogues» – como refere António Cabrita no prefácio.
Com efeito, nesta obra, tal como salienta ainda António Cabrita, instaura-se uma «poética da leitura», revelando o autor a sua ambição de legente, ou seja, um leitor que escreve (p. 115). E, nesta esteira, leitura e escrita mesclam-se como elementos instauradores de uma ordem, na vida e no mundo, já que, como refere Manuel Frias Martins, em A Lágrima de Ulisses, também citado: «Nunca é só de literatura que se fala, quando se fala de literatura.»
Sob a égide do escritor catalão Enrique Vila-Matas, uma presença constante, partimos de uma «filologia do inútil» (primeira parte), colhendo restos e rastos de luz caídos, deixados pelas palavras, para «dançando sobre os pés do acaso» nos cruzarmos com toda uma imensa constelação de escritores, filósofos, ensaístas: Walter Benjamim, Musil, Nietzsche, Montaigne, Robert Walser, Roland Barthes, Maurice Blanchot… – apenas apontando alguns exemplos. De entre eles, emergem alguns dos menos conhecidos e divulgados, apesar do seu imenso valor. É o caso de Joubert, o escritor sem ambições, sem pretensões de publicar, autor de aforismos certeiros, a funcionarem como contraponto à verborreia vaidosa dos nossos tempos, ao afirmar, por exemplo: «não pode encontrar-se poesia em nenhum lugar quando não a levamos dentro de nós» (p.80). Joubert nunca encontrou a casa onde as suas ideias pudessem habitar (p. 82), tendo sido depois outros autores a organizarem e publicarem a sua obra, como foi o caso de Chateaubriand e, posteriormente, de Paul Auster.
Numa tentativa de iluminar o que se oculta, há ainda o evidenciar do recolhimento como porto de abrigo, onde germina a criatividade, como sucede com Montaigne, na torre circular do seu castelo ou com Hölderlin, entre muitos outros. Por seu turno, destacam-se ainda os escritores que praticaram a «ética do desaparecimento», como é o caso de Robert Walser, Musil, Benjamim, Sebald… E, como contraponto, as viagens, a deambulação dos escritores e também do leitor-escritor, em percursos onde a leitura e a escrita confluem sempre, como sucede com Los detectives salvajes de Bolaño: «Li o livro num avião que me levou de Zurique a Santiago do Chile num voo nocturno. Sobrevoando o oceano escuro, a partir dos depoimentos de Cesárea, fui recompondo a sua história e, depois, acompanhei Ulisses Lima e Roberto Belano em busca delirante da poetisa mexicana» (p. 195-196).
Terminada esta dança sobre os pés do acaso, por entre as numerosas teias da intertextualidade, pois como afirmou Tiphaine Samoyault, a «literatura alimenta-se de literatura», descolamos “No Balão com Vila-Matas”, de onde emerge a ideia da elevação através da Arte, da leitura, da escrita, com a mensagem final de Vila-Matas em Montevideu: «Nas tuas mãos está o teu destino, a chave da nova porta». Foi precisamente com essa chave entregue pelo escritor catalão que João Ventura assume ter aberto as portas deste livro (p. 257). E, esta é a mensagem que a leitura nos transmite: o desvendar de tantos mundos exteriores e interiores, de tantos horizontes, de territórios onde descobrimos os outros, mas também a nós mesmos. Por outras palavras, pela leitura, acedemos às moradas, dentro de nós, nas quais não teríamos sabido entrar, como afirma Proust.
Na última parte, intitulada “Recitações” inscreve-se a ideia da obra como «biblioteca portátil» habitada por uma constelação de citações. Nesta esteira, a intertextualidade delineia-se como um mecanismo de leitura literária, uma perspectiva seguida por Charles Givet, para quem a leitura é um acto de intertextualização, sendo o texto uma variação de paradigmas da memória cultural.
Muito mais haveria a dizer sobre este riquíssimo livro-biblioteca (a reler e a revisitar), estas «inúmeras paisagens escavadas, gravadas no papel», cerzidas a lápis, por um “legente”, ou melhor, um leitor cheio de qualidades que transpõe para a escrita. Por conseguinte, num tempo em que os leitores parecem ser cada vez mais, infelizmente, uma espécie em vias de extinção, importa sublinhar a grandiosidade atribuída ao acto da leitura por Borges. Além disso, no momento em que, devido à ausência de hábitos de leitura, se assiste a uma perda tremenda de vocabulário, sobretudo pelos mais jovens, é pertinente lembrar a questão lançada por Lamberto Maffei, em O elogio da Palavra: «Se somos feitos de palavras, sem elas passaremos a ser feitos de quê?»
Nota de leitura publicada no Jornal do Algarve de 28 de fevereiro de 2025 e aqui partilhada com a devida vénia, mantendo a ortografia de 1945, conforme o texto original.