«As quatro décadas da produção poética de Adília Lopes (pseudónimo sugerido por Miguel Tamen), de 1983 a 2023, estão reunidas em Dobra, que a Assírio & Alvim reeditou e atualizou em setembro de 2024 [...].»
«Autora de uma obra profundamente original, nunca se livrou do rótulo de “poetisa pop”, mas o grande motor da sua escrita foi sempre o sofrimento.», escreveu Luís Miguel Queirós num excelente obituário publicado no jornal Público, em «Adília Lopes (1960-2024): uma poesia que abomina a crueldade».
A sua obra poética, reunida inicialmente em Obra (Mariposa Azual, 2000) e, já em 2024, em Dobra (Assírio & Alvim, 2024), com uma autoironia permanente, tem um reconhecimento público, crítico e académico que não cessa de aumentar, ao ponto de se poder falar no estabelecimento de um campo chamado «Estudos adilianos» – em Adília Lopes: do privado ao político (volume editado em 2024 pela Documenta e coordenado pelo professor alemão Burghard Baltrusch et. al.), em resposta à afirmação da autora de O poeta de Pondichéry de que «Os meus textos são políticos, de intervenção, cerzidos com a minha vida.», respondem os autores desta obra que:
«A edição de Adília Lopes: do privado ao político pretende dar eco aos Estudos adilianos, apresentando uma primeira antologia destes trabalhos em livro. Procura-se aqui demonstrar como a obra da autora questiona as narrativas e ideologias que orientam a organização do saber sobre literatura e o alcance sociopolítico desse questionamento. Mais: este livro quer ser uma resposta política à pressão que se vive nas Humanidades no sentido de se tornarem cada vez mais apolíticas, sujeitando-se a uma agenda neoliberal e de mera formação profissional que, no fundo, prolonga a ideologia que há muito invadiu os sistemas universitários a nível global.»
As quatro décadas da produção poética de Adília Lopes (pseudónimo sugerido por Miguel Tamen), de 1983 a 2023, estão reunidas em Dobra, que a Assírio & Alvim reeditou e atualizou em setembro de 2024 e que junta os 36 livros da poeta, desde a sua estreia com Um Jogo Bastante Perigoso, de 1985, publicado em edição de autor, até aos livros mais recentes, como Pardais, de 2022, e Choupos, de 2023, publicados pela Assírio & Alvim. Ao longo dos anos, a sua obra foi publicada por diversas editoras (Frenesim, Hiena, & etc., Black Sun Editores, Angelus Novus, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Mariposa Azual, Averno, Relógio d’Água, Assírio & Alvim).
«A "sua" poesia desentropia», escreveu Adília Lopes, que estou Física na Faculdade de Ciências de Lisboa, na epígrafe de Dias e Dias (Assírio & Alvim, 2020), em cujo texto, datado de 7-VI-2020 (p. 51), se pode ler, numa dimensão autobiográfica que intencionalmente ‘confunde’ o nome Adília Lopes com a pessoa Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira, renunciando «completamente ao lirismo e às suas tonalidades afectivas, [e] mantendo uma densidade que advém da exploração linguística, em todos os níveis», como diz António Guerreiro, que falava numa «secularização da poesia» [António Guerreiro (2001). «A morte do artista», recensão a Obra (2000) e a Irmã barata, irmã batata (2000), Expresso — Cartaz, 10 de março, 16-17], uma poesia como «exercício de salvação pessoal» (Luís Miguel Queirós, id.) ou uma arte que «permite que os ferimentos cicatrizem» (como diz aqui Rosa Maria Martelo):
«Gosto de cismar num quarto interior. Cismar não é preguiçar, não é uma pasmaceira, é activo. Não estou a fazer que faço, a engonhar. Tomo decisões, raciocino, arquitecto. Cismar é como dansar. Escrevo dansar com s porque, como disse Sophia, dançar com ç cedilhado é uma pessoa sentada. Acontece que quando cismo neste quarto interior estou sentada. Mas é como estar a voar. Estou sentada numa cadeira velha de madeira. O quarto não tem janelas, tem quatro bandeiras nas portas por onde entra a luz e tem duas portas. Uma das bandeiras das portas não tem vidro. Entra ar pelas portas e pela bandeira da porta sem vidro. Sinto-me aqui muito bem. Gosto de me lembrar das pessoas de que gosto e das coisas boas da vida. Na parede em frente estão pratos Viúva Lamego muito coloridos e uma xilogravura brasileira alegre. Gosto de alegria. Às vezes venho para aqui acabrunhada, crispada, sem ânimo, estou contra tudo e contra todos. Faço das tripas coração e na semi-obscuridade do quarto, a ver estas coisas que acho bonitas, recarrego baterias, recomeço. Também venho para aqui quando me sinto contente, agradecida. Nesses momentos rezo pela paz no mundo, rezo pelas pessoas que me magoaram.» [Adília Lopes (2020). Dias e Dias (p. 51). Assírio & Alvim.]
Uma obra culta «que leva a poesia muito a sério», apropriando-se de outros autores, com inúmeras citações explícitas, truncadas, parodiadas, e muito humor, mas apropriando-se também da cultura cinematográfica, da cultura popular e «da trivialidade discursiva», o que «torna os versos prevalecentes na segunda etapa de Adília Lopes especialmente inimitáveis no sistema literário» (João Dionísio, Adília Lopes: do privado ao político) – e particularmente interessantes (em toda a obra) para poderem aproximar os alunos do estudo da grande poesia, como se Adília Lopes fosse (Burghard Baltrusch et. al. dixit, id.) «a mulher-a-dias do cânone da literatura portuguesa», «peça fundamental de um cânone literário revisto, crítico, anticlassista, inclusivo, pós- e de-colonial, não-sexista, aberto em todos os sentidos»:
«A via poético-política adiliana reaviva os sentidos; resgata vidas e vozes condenadas ao esquecimento; rompe com o discurso hegemónico; permite uma coralidade de vozes; busca o empoderamento feminino e feminista; torna-nos conscientes diante de um contexto de violência explícita ou implícita; leva-nos a enfrentar o absurdo, o incomum e o inesperado; faz-nos reflectir sobre a opressão e a desobediência.»
Texto publicado nas páginas da Associação de Professores de Português em 31/12/2024.