«Aquilo que torna as línguas misteriosamente complementares, como se, juntas, formassem a manta de retalhos que cobre toda a experiência da humanidade, aquilo que mais as distingue são as referências que cada língua comporta.», afirma o jovem escritor José Luís Peixoto, definindo-as como marcas [definições] da nossa história, como espaço de pertença dos que a têm como língua materna, tornando-se seu objeto e senhor: «É por isso que somos tão moldados pela língua que temos como nós próprios a moldamos a ela, em cada instante que falamos, ou escrevemos, ou pensamos».
As línguas não se distinguem umas das outras apenas pelas sonoridades diferentes de que dispõem, não se distinguem apenas pelas estruturas diferentes ou pelas palavras que existem num lugar e que não existem noutro. Aquilo que torna as línguas misteriosamente complementares, como se, juntas, formassem a manta de retalhos que cobre toda a experiência da humanidade, aquilo que mais as distingue são as referências que cada língua comporta. As razões porque dizemos «copo» para falarmos de um copo, ou as razões porque dizemos «porta» para falarmos de uma porta, são a descrição da nossa história, são o lugar de onde chegámos e todos os lugares por onde passámos. Assim como não escolhemos ser filhos dos nossos pais, não escolhemos nascer sob esta língua. No entanto, faz parte de nós, transformámo-nos nela, pertence-nos como nos pertence o reflexo que nos reflecte no espelho. É por isso que somos tão moldados pela língua que temos como nós próprios a moldamos a ela, em cada instante que falamos, ou escrevemos, ou pensamos. Entre as pessoas que habitam o mundo, formamos um grupo único, partilhamos uma característica estruturante: a língua.
Espalhadas por um mapa de todos os continentes, existem alguns, escolhidos entre nós, que transmitem esta língua a outros, que a ensinam. Ao fazê-lo, transmitem igualmente uma boa parte das referências que formam esta língua: a nossa cultura. Em salas de escolas muito diversas entre si, a nossa língua é ensinada e, depois, repetida com consoantes mais ou menos fortes por aqueles que aprendem. Através desse próprio processo de aprendizagem, a nossa língua torna-se propriedade também daqueles que a aprendem, daqueles que, por vontade própria, escolhem a nossa língua para si próprios. A partir daí, a nossa língua vai com eles para todos os lugares onde forem e, haverá ocasiões, em que a levarão a referir-se a assuntos que, antes, aqui, nunca tinha abordado. Essa é uma das várias maneiras que a língua mostra o seu tamanho, a sua abrangência, a sua capacidade para reter muito daquilo que é o mundo. É também essa uma das formas através das quais a língua se alarga, porque se transforma constantemente, porque a língua cresce com cada um dos seus falantes, sempre.
Em várias ocasiões, em pontos diversos do mundo, tive oportunidade de encontrar esses professores e esses alunos. Quando se chega a um desses lugares, aquilo que se sente, por maior que seja a distância, a primeira sensação que existe é de que, afinal, não é tão longe como se imaginava quando estava em casa e qualquer lugar parecia demasiado distante. Esses encontros lembram muitas coisas que, momentaneamente, tinham sido esquecidas sobre nós próprios e sobre o privilégio que constituiu termos esta língua para exprimirmos o mundo, para imaginá-lo e criá-lo através das regras e da liberdade da sua gramática e, ao mesmo tempo, o privilégio de sermos constituídos por quase todas as referências desta língua ou, pelo menos, sermos capazes de entendê-las, o que é quase a mesma coisa. Com esses professores e com esses alunos a nossa língua encontra caminhos para ser mais completa, para chegar mais longe, para nomear novos significados. Com eles, o «nossa» de «nossa língua» não é apenas maior, mas é também mais complexo e mais próximo de dizer tudo. Com eles, o nosso «nós» é maior, mais rico, mais vivo.
In Suplemento do JL (Jornal de Letras, Artes e ideias), n.º 109, de 14 de fevereiro de 2007.