«Todos naquele cubico são mbora boa gente*. E muitos sabem disso. Podiam andar sem aspas, mas parece que ainda não chegou o tempo. Gírias e calões só na informalidade. Na escola e no trabalho são, por recomendação, evitados. O que me alegra é saber que pelo menos têm terra e são angolanos.»
Assim se refere Edno Pimentel à gíria luandense, que integra um sem-número de palavras de origem banta (do quimbundo e do chócue), contribuindo para definir cada vez mais a identidade do português falado em Angola. Crónica publicada no semanário Nova Gazeta, em 9 de julho de 2015.
* Para os significados de cubico e mbora41, consultar o glossário associado ao texto integral.
Já algumas vezes foi dito aqui que não devemos adoptar atitudes ou comportamentos xenófobos contra os nossos concidadãos. Venham eles de onde vierem, e independente do modo como cá chegaram, merecem todo o nosso respeito. Não importa a etimologia, morfologia, sintaxe, semântica ou outro estatuto gramatical que lhe queiram atribuir. Recebamo-los, ouçamo-los, se possível, concedamos-lhes a palavra e, só depois, vê-se o que fazer.
Sei que muitos deles – ou delas – são espezinhados por não terem entrado com um convite pela porta principal. A porta travessa foi a alternativa possível para se poderem afirmar. Sei também que, por alguns já cá estarem há mais tempo, esses estreantes são constantemente postos no convés do esquecimento, com o intuito não apenas de os fazer desaparecer, mas, sobretudo, para os aniquilar.
No entanto, nem mesmo as aspas têm sido suficientemente fortes para travar o desejo de existir dessas palavras na nossa língua. O refúgio desses muadiês1 tem sido, até agora, o cubico2 de kambas3 que ainda não bumbam4. São ndengues5 bué6 esforçados. Desde há muito que tentam arranjar um salo7, mas... desconseguem8.
Os kotas9, uns papoites10 malaiques11 que nunca ajudam, têm muito kumbu12 mas preferem gastar com as mamoites13. Naquele cubico2, mesmo com as makas14, ninguém banzela15. Todas as manhãs, depois do matabicho16 – uma magoga17, um pincho18 e um bebe-e-me-deixa19 do janela-aberta20 do mais-velho Minguito –, os putos21 bazam22 a um dos arreiós23 – na baúca24 do candongueiro25 – comprar uns mambos26 para revender. É o único bisno27 que dá jeito por enquanto. O negócio dá para se manterem vivos. Paiam28 de tudo um pouco, até mbilas29 e parte-os-cornos30.
E as mboas31 não maiam32. Querem lá saber do que as pessoas pensam delas quando levam as bacias à cabeça para zungar33? O importante é bumbar4 e comprar cadernos para os canucos34.
Andam à vontade e ninguém mais os estiga35. Mas as mamoites13 e as suas cassules36 não podem maiar32. Há muitos uís37 por aí com bué6 de chacho38 que só querem ngombelar39. Abram os olhos, ou ainda pensam que vocês são bombós40.
Glossário
1 - muadiê - tipo, indivíduo (do quimbundo – muadi, «velho; mais velho»).
2 - cubico – casa (contração de cubículo).
3 - kamba – amigo, pessoa conhecida (do quimbundo).
4 - bumbar – trabalhar (origem – ?).
5 - ndengue – miúdo, rapaz, rapariga, irmão/irmã mais novo/a (do quimbundo – kandengue).
6 - bué – muito, demasiado.
7 - salo – trabalho.
8 - desconseguir – não conseguir depois de várias tentativas e de muito esforço.
9 - kota – senhor, mais-velho, irmão mais velho (do quimbundo).
10 - papoite – kota, senhor, mais-velho (calão, origem – ?).
11 - malaique – pessoa ou coisa que não presta (calão, origem – ?).
12 - kumbu – dinheiro (do quimbundo – ukumbu).
13 - mamoite – senhora, dona (calão).
14 - makas – problema (do quimbundo).
15 - banzelar – pensar, matutar.
16 - matabicho ou mata-bicho (grafia preferível): em Angola, o mesmo que pequeno-almoço ou «café da manhã».
17 - magoga – sandes de frango (origem – ?).
18 - pincho – churrasco (origem – ?).
19 - bebe-e-me-deixa – gasosa ou refrigerante em garrafa de meio litro ou mais.
20 - janela-aberta – taberna, local onde se vende bebidas.
21 - puto – miúdo, rapaz, irmão mais-novo.
22 - bazar – ir, ir-se embora (do quimbundo – kubaza).
23 - arreió – mercados informais onde se vendem roupas e outros bens a baixo preço (de arreou – pretérito perfeito de arrear).
24 - baúca –«falta de algo ou indica o último lugar num determinado sistema de classificação ou ordem» (sítio Jovens da Banda).
25 - candongueiro – táxi, taxist.
26 - mambos – coisas (origem – ?).
27 - bisno – negócio (muitas vezes ilegal), pequenos negócios (do inglês – business).
28 - paiar – vender (calão).
29 - mbilas – camisa, camisola (gíria).
30 - parte-os-cornos – camisola interior mboas.
31 - mboas – mulher, namorada, esposa (origem – ?).
32 - maiar – distrair-se (origem – ?).
33 - zungar – vender na rua (do quimbundo – nzunga).
34 - canuco – jovem; rapaz, rapariga (do chócue – kanuke).
35 - estigar – ridicularizar (deturpação de instigar).
36 - cassule = caçula – miúdo ou miúda, criança (do quimbundo ka'zuli, «o último da família»).
37 - uí – tipo, indivíduo (origem – ?).
38 - chacho – palavreado, lábia (origem – ?).
39 - ngombelar – fazer amor, violar (do quimbundo – kungombila).
40 - bombó – idiota, estúpido (origem – ?).
41 - mbora – ver texto "Deixa mbora em Angola".
Crónica publicada na coluna do autor, Professor Ferrão, no semanário angolano Nova Gazeta, no dia 9 de julho de 2015. Os termos quimbundo e chócue apresentam-se no aportuguesamento registado pelo Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa (cf. também o Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora e disponível na Infopédia), muito embora em Angola se aceitem as grafias kimbundu e cókwe. Manteve-se a grafia seguida ainda em Angola, anterior ao Acordo Ortográfico.