Ainda à volta do significado dos provérbios «Tantas vezes vai o cântaro à fonte...» e «Quem te manda a ti, sapateiro, tocar rabecão?», deixamos aqui uma reflexão de Maria Regina Rocha, que fica como complemento de uma anterior resposta.
A compreensão plena dos provérbios exige dois passos: em primeiro lugar, o esclarecimento do seu significado literal e, depois, a sua interpretação, isto é, a compreensão do que se pretende dizer com essa sentença ou esse dito.
O provérbio «Tantas vezes vai o cântaro à fonte, que um dia lá deixa a asa» evoca o ambiente rural antigo da ida à fonte buscar água com um cântaro de barro. O cântaro tinha de ser manuseado com cuidado para não bater nas pedras da fonte ou no cano, pois, como era de barro, facilmente quebraria. Ora, a asa do cântaro é uma parte saliente: quando se enche o cântaro na fonte, pode-se inadvertidamente bater com a asa ou no cano ou na pedra, e ela partir-se. Conclusão: a ida à fonte é um risco para o cântaro. Se a ida à fonte for frequente, um dia, a asa há de partir-se.
Com este provérbio pretende dizer-se que a prática constante de procedimentos perigosos um dia dará um mau resultado. Por exemplo, conduzir com excesso de velocidade só uma vez, excepcionalmente, poderá não provocar um acidente, mas, se essa condução imprudente e perigosa se repetir, é natural que um dia o acidente ocorra. Quando se corre um risco frequentemente, um dia, o que se teme acabará por acontecer.
A pergunta «Quem te manda a ti, sapateiro, tocar rabecão?» é uma a(du)lteração da frase «Não suba o sapateiro além da chinela», que tem uma história.
Um dia, o grande pintor Apeles (pintor grego do séc. IV a. C.), ao terminar um quadro, resolveu expô-lo à sua porta e esconder-se atrás da tela para ouvir os comentários de quem passava e parava para admirar o quadro. Veio um sapateiro, que notou um defeito na sandália de uma das figuras principais. Apeles emendou o erro e tornou a pôr a tela em exposição. No dia seguinte, o sapateiro voltou a passar e, ao ver atendido o seu reparo, permitiu-se notar outros defeitos: na perna, no braço e nas vestes da mesma figura. Então, o artista apareceu e disse-lhe: «Não suba o sapateiro além da sandália!»
O grande artista corrigiu o erro da sandália, por reconhecer no sapateiro competência para se pronunciar sobre esse assunto. No entanto, já não lhe reconheceu competência para se pronunciar sobre assuntos que o sapateiro não dominaria.
Esta sentença é utilizada para criticar as pessoas que se atrevem a falar de assuntos que desconhecem ou a executar obras ou trabalhos para os quais não têm competência. É mesmo utilizada em relação a maus artífices, a artistas imperfeitos, a pessoas que se fazem de peritos sem a respectiva competência.
N.E. – Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.