«Escrever certo é elitismo?» — pergunta o poeta e ensaísta brasileiro Ferreira Gullar, numa crítica a certos erros linguísticos, que a própria comunicação social ajuda a difundir.
Muita gente torce o nariz quando um chatola, como eu, começa a reclamar dos erros de português que se cometem nos jornais e na televisão. Desses, muitos dos que os cometem são profissionais, mas estão pouco ligando para o que consideramos escrever e falar errado.
Sabe-se que, para a maioria dos linguistas, não existe isso de falar errado: todo o mundo fala certo.1 Admitem existir uma "norma culta", que obedece às regras gramaticais, mas violá-las não é propriamente errar. Ouvi de um deles que está tão certo dizer "pobrema" como "problema". Obtuso como sou, tenho dificuldade de entender por que eles mesmos vivem escrevendo livros e colunas em jornais, ensinando como se deve escrever. Ora, se não existe falar errado, por que ensinar?
Não deve o leitor concluir daí que sou aquele morrinha que vive catando os deslizes de cada um, mesmo porque não posso me considerar um grande conhecedor da língua. Gosto dela, prezo-a ou, melhor dizendo, considero-a uma das extraordinárias criações do gênio humano. Não é maravilhoso imaginar que, muito antes de surgirem os gramáticos, nossos ancestrais já falavam obedecendo às normas que tornaram o idioma meio de comunicação entre as pessoas e de invenção do nosso mundo cultural?
Pense bem nesta maravilha: a palavra este indica algo que está perto de mim; esse, o que está perto de você; e aquele, o que está longe de nós dois. Eis a linguagem expressando as relações reais do sujeito e das coisas do mundo. Não obstante, todos os locutores de rádio e televisão, como a maioria dos jornalistas, referindo-se ao que está perto de si, usam esse em lugar de este. E isso é hoje tão frequente que já nem se repara.
Ninguém vai morrer por isso, mas não deixa de ser preocupante observar as pessoas deformarem e empobrecerem a língua, usando, por exemplo, sobre como regência de quase todos os verbos.
Em vez de «comentou os fatos» dizem «comentou sobre os fatos»; em vez de «quando falou do problema», dizem «quando falou sobre o problema»; em vez de «alertado do ataque», dizem «alertado sobre o ataque», e por aí vão.
Em certas frases, o uso de sobre chega ao limite do desatino: «o deputado aguarda o desmentido sobre a denúncia», quando seria muito mais simples e elegante dizer «aguarda o desmentido da denúncia». Vá você, agora, explicar como surgiu essa mania do sobre, que espero seja apenas uma mania, como outras que surgiram e se foram.
Lembram-se da época em que todos usavam a expressão «a nível de»? Servia para qualquer coisa, como ouvi um entrevistado afirmar que, «a nível de ração para porcos, o melhor seria...». Felizmente, essa mania passou, o que me faz crer que a língua termina por excluir de si as excrescências que nela se introduzem. Mas parece que nem sempre, porque, às vezes, o mau uso se generaliza e até mesmo se oficializa.
Existe coisa mais descabida do que chamar de sambódromo uma passarela para desfile de escolas de samba? Em grego, -dromo quer dizer «ação de correr, lugar de corrida», daí as palavras autódromo e hipódromo. É certo que, às vezes, durante o desfile, a escola se atrasa e é obrigada a correr para não perder pontos, mas não se desloca com a velocidade de um cavalo ou de um carro de Fórmula 1.
Muitas vezes, à irreverência junta-se a ignorância, a pouca leitura dos bons escritores. Não é que tenhamos de escrever como escrevia Camões, mas o conhecimento do idioma, em seus diferentes momentos históricos e em suas mudanças, ajuda-nos a preservar a língua no que tem de essencial como também a transformá-la sem lhe trair a natureza. É essa ignorância que leva alguns redatores de televisão a substituir «risco de vida» por «risco de morte», achando que esta é a expressão correta. Ganha-se em obviedade e perde-se em elegância.
Já mencionei aqui, noutra ocasião, a tal lei da termodinâmica, segundo a qual os sistemas tendem à desordem. Sendo a língua um sistema, está sujeita a desorganizar-se, como o atestam os exemplos citados, tanto mais hoje em dia, quando a TV induz milhões de pessoas a falar errado. Essa mesma TV que poderia se tornar um instrumento decisivo na luta contra a entropia. Ou será que escrever certo é elitismo?
1 N.E.: Trata-se de uma afirmação discutível, porque os linguistas não negam a existência dos erros linguísticos, à luz das tradições normativas de cada língua institucionalizada. Mas, em contraste com a perspectiva prescritivista, a linguística trata muitos desses erros como material com interesse para a descrição e a teorização do funcionamento interno das línguas e do uso destas em sociedade.
Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 jun. 2010. Ilustrada, Caderno E, p. 12