«(...) Os amigos de Peniche são esses aliados que pouco mais fazem do que saquear e dar de frosques quando a batalha aperta [como se conta no episódio d’ A Baleia que Engoliu Um Espanhol] (...)».
1. Vêm aí os ingleses
Corria o ano de 1589. A armada inglesa de Francis Drake descia pela costa portuguesa, depois de ter acostado à Corunha, com muito prejuízo de vidas, jóias e honra dos habitantes da cidade, que ficaram à mercê daqueles ingleses, irritados sobremaneira pelo atrevimento da Armada Invencível uns tempos antes.
Sim: a Armada Invencível, essa tentativa do Senhor do Mundo – Filipe II – de se casar à força com Isabel I de Inglaterra. Tentativa que deu no que todos sabemos: a armada que saíra de Lisboa, a mais formosa das cidades espanholas, deu de caras com os navios ingleses em mares revoltos e a aventura não correu bem. A armada espanhola, que incluía alguns dos melhores galeões de guerra portugueses, não conseguiu conquistar Inglaterra e a rainha Isabel I manteve-se solteira e virgem – pelo menos no papel.
Pois agora era a vez de os ingleses retribuírem o feito e virem maçar os espanhóis. E que melhor maneira de irritar a alma castelhana do que tentar surripiar-lhe uma parte do reino? Os ingleses traziam na bagagem D. António, o Prior do Crato. Queriam fazê-lo desembarcar em Portugal, para que este recuperasse o trono, o que interessava sobremaneira à Coroa inglesa, que assim se vingaria da armada impertinente, reduziria o império espanhol e recuperaria o velho aliado, por ora engolido nos domínios de Filipe.
Ao comando, vinham o almirante John Norris e Francis Drake – que os espanhóis chamavam El Draque. Pelo demais, a armada inglesa era composta por mercenários, pequena nobreza desocupada e alguns holandeses, todos unidos na irreprimível vontade de dar traulitada a espanhóis.
Já na costa portuguesa, os soldados avistam o navio Swiftsure, onde vinha o conde de Essex, Robert Devereux. Devereux tinha sido, até há poucas semanas, o amante de estimação da rainha Isabel. Mas o jovem, farto das manias da senhora e das intrigas do palácio, decidira partir à aventura – quisera então juntar-se à tal armada inglesa que se estava a juntar em Plymouth para vir por aí abaixo vingar a Armada Invencível.
A rainha não deixou: enviou ordens expressas para que Francis Drake devolvesse Robert Devereux, que se devia apresentar às ordens da soberana para os serviços que lhe fossem atribuídos.
Drake informou Isabel I que o conde não estava em Plymouth e não fazia ideia onde poderia encontrá-lo.
Com a soldadesca a ferver de ódio ao espanhol e a possibilidade bem real de a rainha mandar abortar a expedição só para garantir que o seu querido não fugia, Drake decide avançar. Seguem então ingleses, holandeses, um punhado de portugueses – todos em direcção à nossa península.
Devereux andava a brincar à apanhada – sabia muito bem o que queria: juntar-se à armada quando estivesse longe de Inglaterra e da sua cansativa rainha.
Pois foi já na costa portuguesa que o conde deu ares da sua graça, aparecendo em glória, de peito alçado e sorriso imenso, na proa do navio Swiftsure, galgando o mar e brilhando ao sol português.
Os soldados ingleses, quando perceberam quem era aquele nobre que agora se juntava à armada inglesa, aplaudiram, assobiaram e sentiram o coração a bater mais depressa – tinham ali mais um herói inglês pronto a vingar o atrevimento espanhol.
O conde adorava a atenção – Devereux era um homem orgulhoso, aventureiro, de coração na boca… Francis Drake suspirou quando viu o Swiftsure a passar -lhe ao lado. Não queria ir contra as ordens da rainha – mas ali, o que podia fazer? Mais valia aproveitar a ajuda daquele conde impetuoso para roubar Portugal aos espanhóis.
2. Três corsários a conspirar
Drake, Norris e Devereux juntam-se então para planear o ataque às terras portuguesas. D. António dissera-lhes que a conquista de Lisboa seria fácil – mas os ingleses decidem aportar em Peniche, um pouco a norte.
Por que razão quiseram desembarcar em Peniche e não seguir directamente para Lisboa? Não sei. Talvez tivesse sido o próprio D. António a insistir, para pôr um pé em terra o quanto antes. O pretendente era um aventureiro e estava impaciente por ser rei na sua terra – mesmo que fosse apenas nessa quase ilha mal ligada ao continente. Ou então terá sido a notícia de que estava fundeado no porto de Peniche um galeão espanhol a abarrotar de ouro. Mas o mais provável é que tenha sido tudo isso e muito mais – afinal, interessava aos ingleses ter mais terra para saquear e era difícil aguentar aquela trupe de mercenários, cheios de fúria e ali encerrados nos barcos há muitos dias.
Fosse porque fosse, os ingleses chegaram-se ao pé de Peniche, pelo sul, e atacaram de imediato a guarnição, que era comandada por um tal de Araújo – este militar, bem português, não teve alternativa do que cumprir a sua obrigação e disparar contra os ingleses que traziam o seu rei.
No navio donde assistia a esse primeiro lance da batalha, Francis Drake virou-se para D. António:
– Não me tinha dito que aquela fortaleza estava nas mãos dum amigo seu?
D. António encolheu os ombros:
– Sim, o capitão Araújo é bom e velho português. Mas não quer certamente que ele revele já a sua posição, pois não?
Francis Drake fez um gesto de impaciência. Isto começava bem, não havia dúvida. Olhou em volta, para a costa que o rodeava. Havia ali umas ilhas ao fundo que não pareciam interessar por aí além… Falésias, praias…
Reparou então, um pouco a sul, na praia da Consolação. O velho corsário percebeu que aquela praia, à beira da baía, estava desguardada – pois, certamente, os espanhóis não achavam possível que, com as marés assim, algum almirante quisesse ali aportar.
Foi mesmo ali que Drake mandou a esquadra desembarcar. Eram milhares de ingleses, pontuados de alemães e holandeses, todos sedentos de matar o seu espanhol.
3. Um conde de espada alçada
O primeiro a avançar foi Robert Devereux, que saltou para a água, aos gritos, espada alçada, num gesto que os portugueses, do navio, reputaram de um tanto ou quanto ridículo – pois a praia estava vazia.
Não interessa: a guerra também tem o seu quê de ridículo – e a verdade é que depressa apareceram umas centenas de soldados de Filipe II, que, no entanto, nada puderam contra os milhares de ingleses que desembarcaram logo a seguir ao amante da rainha.
Quando a praia já estava tomada, desembarcaram, com pompa, Francis Drake e John Norris, para assinalar a tomada daquelas terras por Isabel I.
Um soldado espanhol que ali estava deitado, ferido duma estocada holandesa, viu o corsário e não conseguiu deixar de gritar ¡El Draque!
Sim, Drake era uma assombração dos veteranos da Armada Invencível – e tanto medo teve do que viu que o espanhol julgou que aquela visão só podia significar uma coisa: Portugal deixaria de ser espanhol. Se Francis Drake estava à frente daquela expedição, nada podiam os exércitos ibéricos fazer para evitar a derrota.
Esse soldado espanhol de pouca fé morreu minutos depois. Nunca veio a saber que aquela expedição ali desembarcada, que libertou Peniche em poucos minutos, nada conseguiria fazer dali para a frente. Portugal continuaria espanhol, os ingleses voltariam com o rabo entre as pernas para a sua ilha – e todo o episódio seria recordado no futuro não como o início da libertação portuguesa e do reinado de D. António, mas apenas como a origem antiga da velha expressão «amigos de Peniche» – pois que os amigos de Peniche são esses aliados que pouco mais fazem do que saquear e dar de frosques quando a batalha aperta.
A história, claro, continua. Estes ingleses ficam a saber que há um tesouro em Peniche, aparece um salteador (ou serão dois?) e, depois de muitas voltas e reviravoltas, as tropas avançam para Lisboa entretidas num belo saque das vilas e aldeias portuguesas (com amigos destes…). Ah, Devereux acaba de cabeça cortada! Mas para saber tudo isso há que ler o resto do livro.
Texto que o professor universitário e tradutor Marco Neves publicou no blogue Certas Palavras em 13/12/2018. Manteve-se a norma ortográfica, anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.