Crónica de Wilton Fonseca acerca de como a vida política em Portugal tem consequências até linguísticas, como seja o empobrecimento semântico do verbo prescrever (texto publicado no jornal i de 20/03/2014).
A ministra da Justiça prescreveu a receita do êxito: viu o seu ministério eleito o primeiro executor das exigências da troika e garantiu que a impunidade não tem futuro em Portugal.
Acontece que o cumprimento das exigências foi ignorado pelo dr. [Paulo] Portas e a impunidade não parece disposta a emigrar para um qualquer paraíso fiscal. Isto é o que se anuncia com a enxurrada de prescrições que, ante o espanto e incredulidade de (quase) todos, ameaça levar ou já levou por água abaixo os mais “mediáticos” processos e a credibilidade do sistema judicial.
Prescrever significa «escrever antes», «escrever na frente». Pode ser o estabelecimento de normas para vigorar em determinadas situações («O BdP deveria prescrever os procedimentos a tomar perante certas irregularidades da banca»); um conselho, a indicação precisa de alguma coisa («O advogado prescreve que o prolongamento das alegações pode ser obtido»); a determinação de um tratamento para um paciente («O psiquiatra prescreveu uma baixa para o magistrado») e, finalmente, a perda de validade, de vigência ou a extinção de um determinado processo. É o significado mais conveniente no presente.
Dispensa exemplos.
Um julgamento pode determinar a culpa (ou inocência) de uma pessoa. A prescrição deixa aberta a ferida da suspeição. Põe em causa a justiça, mas enriquece advogados. Prescreve a democracia e mina a confiança nos seus fundamentos. Mas, evidentemente, há os paraísos fiscais... onde os lucros nunca prescrevem.
texto publicado em 20/03/2014, na coluna do autor "Pontos nos ii" no jornal i.