«Falámos do seu bem-amado Sporting, do amado póquer, de jornalismos moribundos, de crónicas mal amanhadas, da língua portuguesa assassinada, de amigos comuns com mau feitio e coração grande, e de supostos amigos que agora o incensavam, Prémio Camões na biografia.» Crónica em homenagem ao jornalista, cronista, escritor (Prémio Camões 2011), poeta, dramaturgo português Manuel António Pina (18 de novembro de 1943, Porto-19 de outubro de 2012).
Andrajoso, canito atrás, o homem acelerou o passo ao encontro do Manel, arrastando a perna cambada. Poeta da vida, da coerência e dos animais, Manuel António Pina, jornalista-cronista-escritor, quedou-se à conversa com o sem-abrigo rameloso, provavelmente agarrado à droga; Manel agarrado ao eterno charutinho. Através da vidraça do costumado restaurante portuense, babado de apetite por generoso sável, acompanhei o gesticular do Manel em paleio com o tipo da rua. O cachorro pindérico, rançoso e feio abanava a cauda, roçando as calças dos dois homens. Manel pródigo em carícias ao vira-lata, semblante fingidor de zanga séria. Finalmente, puxa de uma nota para o homem, que se arrastou até ao minimercado da esquina.
Sável na mesa, desancámos os vigaristas da política, da justiça e dos negócios, falámos bem da vida, dos amigos e dos animais, sobretudo dos gatos. Manel mal provou o sável, petiscou a açorda e bebericou dedinhos do vinho escolhido por ele. Falámos do seu bem-amado Sporting, do amado póquer, de jornalismos moribundos, de crónicas mal amanhadas, da língua portuguesa assassinada, de amigos comuns com mau feitio e coração grande, e de supostos amigos que agora o incensavam, Prémio Camões na biografia. «Chegou a hora do espanto/chegou o grande momento/em que tudo é fingimento!», previu o poeta.
O Manel morreu. Sorri de irónica amargura quando costumeiras personagens botaram escrita e discurso sobre o Manuel António Pina. Gente com quem, para orgulho meu, Manel nunca se sentaria à mesa. Nesse dia desta Primavera, dissertámos sobre políticos que lhe telefonavam a dizer que queriam "trocar impressões" com ele. Sócrates, Passos, Gaspar & Companhia vieram à conversa. De repente, Manel pediu só um minutinho e saiu ao encontro do sem-abrigo, que sopesava agora em mãos três latinhas de comida para cão. Cuidadoso, o poeta dos gatos abriu as latas e depositou-as no chão. O cãozito latiu e avançou para o pitéu. Manel puxou de outra nota e fê-la desaparecer no bolso do coçado casacão do andrajoso.
Charuto em brasa, Manel explicou-me a cena: comprava amiúde latas para o cão do amigo de esquina, a quem concedia a nota do costume. Até que voz amiga o avisou: o homem emborcava a comida do cão e gastava o dinheiro sabe-se lá onde. Armado em Zé dos Pneus, lancei ao acaso: «Ó Manel, o que é que vai ser deste Povo e deste País?» Tragada profunda do poeta: «Sei lá! Perguntem aos vossos gatos e aos vossos cães!»
In revista do Correio da Manhã de 28 de outubro de 2012. Manteve-se a ortografia seguida pelo jornal português.