« (...) O passeio que se vai dar para desmoer é, de facto, para ajudar a fazer a digestão. Ou seja, a digestão é beneficiada pelo desmoer. Logo, não pode ser a mesma coisa. (...)»
Para o Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, desmoer é «um termo que se usa em alguns meios populares, mas ainda não está dicionarizado, nem se prevê que venha a estar nos tempos mais próximos».
Já esmoer, segundo o Dicionário Priberam, é «triturar com os dentes (remexendo muito na boca), mastigar, ruminar».
Por exemplo: «Esmoa-me essa pêra parda bem esmoída que ela é rija como uma grade.»
Diz-se que desmoer é fazer a digestão. Não pode ser. O passeio que se vai dar para desmoer é, de facto, para ajudar a fazer a digestão. Ou seja, a digestão é beneficiada pelo desmoer. Logo, não pode ser a mesma coisa.
Depois de uma lauta refeição ninguém diz: «Nem me vou levantar da mesa. Vou ficar aqui a desmoer.» A digestão dá-se sempre, mas não se está sempre a desmoer.
Desmoer é contrariar o que nos mói o juízo, o moral, o caparro. Moer é estafar, reduzir-nos a fanicos no eterno moinho de água que é existir. Somos como sardinhas moídas por todas as outras sardinhas em cima de nós.
A vida está sempre a moer-nos, a gastar-nos, a lixar-nos com lixa. Desmoer é tentar fugir a essa condição. Atravessa-se um campo para desmoer. Descalça-se um pé. Assobia-se.
A vida também nos esmói. Tritura-nos com os dentes, remexendo muito na boca, mastigando-nos. Nós podemos ficar a esmoer, ruminando sobre a nossa sorte, ou tentarmos desmoer um bocadinho.
Moídos e esmoídos pelos dentes das engrenagens da máquina de esmagar humanos, somos simultaneamente ralados pelas ralações do dia-a-dia.
Não podemos ganhar. Só nos resta desmoer.
N. E. – A resposta a que se refere Miguel Esteves Cardoso data de 1999, e, entretanto, o verbo desmoer acabou por ter entrada nos dicionários. O Dicionário de Língua Portuguesa (DLP) da Porto Editora (disponível na Infopédia) regista-o como vocábulo popular que significa «fazer a digestão (geralmente de comida pesada ou calórica)». O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa também o acolhe, relacionando-o com o discurso informal e atribuindo-lhe o significado de «fazer a digestão». Do ponto de vista da sua formação, trata-se de uma palavra legítima, derivada por prefixação do verbo moer: des- + moer. Note-se ainda que, neste caso, o prefixo des- não parece marcar negação ou falta, antes sugerindo um valor intensivo, à maneira de desinfeliz, de desinquieto ou até de "destrocar" (este, um verbo rejeitado pela norma). Este valor de reforço ou intensidade também está associado a esmoer, «moer com os dentes, triturar; digerir ruminar» (cf. DLP da Porto Editora), outro verbo derivado de moer pela adjunção do prefixo es-, que transmite a ideia de iteração (cf. esmurrar), redução a fragmentos (esboroar) ou intensidade (esturrar) – ver esmoer no Dicionário Houaiss. Refira-se por último remoer, literalmente «moer de novo», mas mais usado em acepções de caráter metafórico como «importunar» (em «remoer a paciência») e «refletir muito» (em «remoer um problema»).
crónica do autor transcrita, com a devida vénia, do jornal português "Público" do dia 16 de setembro de 2018.