É pela via da semântica que a mundividência judaico-cristã está mais subliminarmente impregnada na língua portuguesa escreve Ana Martins, em artigo publicado no semanário "Sol" de 18 de Dezembro de 2009.
Saramago devia ter retardado o lançamento do seu Caim. Em vésperas de Natal, atirar que Deus é «cruel, invejoso, insuportável», «rancoroso, vingativo e má pessoa» teria muito mais impacto. E, ao mesmo tempo, as lapalissadas que lançou, por essa altura, teriam um contexto mais adequado agora, pois no Natal ninguém espera ouvir nada de novo.
Uma dessas lapalissadas foi: «A Bíblia tem uma influência muito grande na nossa cultura e até na nossa maneira de ser» (Público, 19/10/09).
Está certo. Basta ver como inúmeras referências bíblicas estão incrustadas na língua. Desde as sentenças e os provérbios («Batei e abrir-se-vos-á»; «Procura e encontrarás»); às fraseologias («estar num santo sudário», «ser um calvário»); até à formação de palavras, por exemplo, do adjectivo babilónico, de Babel (babel, em hebraico, significa confusão).
Mas é pela via da semântica que a mundividência judaico-cristã está mais subliminarmente impregnada na língua. Atente-se no caso dos significados do verbo ver. Ver é «exercer o sentido da vista», mas é também saber, conhecer, interpretar, pensar, perceber, aperceber-se, em enunciados como «não ver que o enganavam», por exemplo.
A ascendência deste valor semântico dificilmente pode ser negada: «E voltando-se para os discípulos, disse-lhes em particular: Bem-aventurados os olhos que vêem o que vós vedes» (S. Lucas, 10, vers. 23); «Deixai-os: são condutores de cegos: ora, se um cego guia outro cego, ambos cairão na cova» (S. Mateus, 15, vers. 14).
Artigo publicado no semanário Sol, de 18 de Dezembro, na rubrica Ver como Se Diz.