Lutamos por ti!
Cumulativamente com o Eu é que não sou parvo, a cadeia de lojas Media Markt, a maior empresa europeia daquilo que se designa por electrónica de consumo, tem agora o slogan: Lutamos por ti! Constatei isso numa recente visita a uma das lojas em que, depois de uma compra, me entregaram um cartão no qual creditaram o valor do IVA de um determinado produto, resultante de uma promoção, lá vindo impante o dito slogan. Estranhei! E estranhei não apenas pela forma de tratamento usada, mas sobretudo pela utilização do pronome pessoal ti em vez de si. A frase não era Lutamos por si, mas sim Lutamos por ti?! Não se trata aqui apenas, como já se vai vendo em certos slogans, do uso de um verbo conjugado na segunda pessoa do singular, mas, sim, do uso ostensivo do pronome pessoal ti. E não apenas num anúncio televisivo, múpi, outdoor ou afim, dirigido a um colectivo de incertos, mas, sim, aposto num cartão entregue pessoalmente ao cliente! Só faltou mesmo que quem o entregou verbalmente me tuteasse!
Ora, no português europeu, os pronomes pessoais tu/ti são usados como formas de tratamento de intimidade, entre familiares, entre amigos, entre colegas, pressupondo sempre familiaridade/proximidade. Este uso é, aliás, bastante estrito, havendo muito poucas excepções a esta regra, como sejam os mais velhos dirigirem-se aos mais novos ou em raras situações de hierarquia social e profissional muito vincada mas que têm, aliás, vindo a atenuar-se. A única excepção aceitável para este tuteio da Media Markt seria a da idade, de cima para baixo. Ou seja, o slogan dirigir-se ao segmento jovem, mas não é o caso, já que o mesmo, tanto quanto parece, abarca o universo de potenciais clientes da empresa. Assim sendo, aquele ti parece-me pouco aceitável ou pelo menos muito pouco convencional.
A Media Markt é conhecida por ter campanhas publicitárias com slogans fortes e que ficam facilmente na memória de quem os lê ou ouve, de que é exemplo aquele: Eu é que não sou parvo. Também é sabido que em comunicação e em publicidade há estruturas muito profissionais em que nada é deixado ao acaso. Embora haja nódoas em alguns panos, como, por exemplo, até já aqui abordámos. Como justificar, então, aquele inusitado ti? Lembrei-me do espanhol, em que o tratamento pela segunda pessoa do singular tem informalmente um uso mais alargado e admissível do que no português, e descobri um vídeo de uma campanha simétrica da Media Markt espanhola com o slogan Luchamos por ti, anterior à portuguesa e ao seu Lutamos por ti. Ainda em Portugal, aproveitando o balanço, a loja de Alfragide, para assinalar três anos de existência, adoptou o lema: Lutamos para que não pagues IVA, assumindo inequivocamente na conjugação do verbo pagar o tratamento pela segunda pessoa do singular.
Embora não seja de excluir, acho pouco crível que tal se fique a dever a um menor cuidado na eventual transposição da campanha espanhola para a realidade portuguesa, pelo que me parece haver ali algo de deliberado, de intencional, visando uma maior aproximação e vinculação entre a marca e o cliente, a que se associa o tratamento por tu. Aliás, na esteira da Media Markt e configurando o que pode bem ser uma tendência, a campanha da ZON de promoção de um novo produto de fibra óptica, denominado Íris, é igualmente conjugada na segunda pessoa do singular, no site do produto, no Facebook, e, ainda que só no slogan, na televisão, mantendo, porém, na newsletter em papel, entregue por via postal aos clientes, o tratamento na terceira pessoa do singular, o que parece indicar que também o meio influencia a opção de tratamento, aceitando-se melhor o tratamento por tu na Internet, nas redes sociais e mesmo em anúncios televisivos do que por correio postal.
Ora, este tuteio, que poderá resultar de um fenómeno de contaminação linguística, por via do espanhol ou do inglês, de um fenómeno de contaminação de meios, dos novos para os tradicionais, ou apenas de um refinamento das técnicas de comunicação e publicidade, é, em si mesmo, interessante, enquanto estratégia comunicacional, sobretudo se puder vir a traduzir-se num uso mais alargado, quebrando algum do formalismo que ainda persiste nas formas de tratamento do português europeu.