Em 1973, fui trabalhar numa revista brasileira editada em Lisboa. Logo no primeiro dia, tive uma amostra das deliciosas diferenças que nos separavam, a nós e aos portugueses, em matéria de língua. Houve um problema no banheiro da redação e eu disse à secretária: «Isabel, por favor, chame o bombeiro para consertar a descarga da privada». Isabel franziu a testa e só entendeu as quatro primeiras palavras. Pelo visto, eu estava lhe pedindo que chamasse a Banda do Corpo de Bombeiros para dar um concerto particular de marchas e dobrados na redação. Por sorte, um colega brasileiro, em Lisboa havia algum tempo e já escolado nos meandros da língua, traduziu o recado: «Isabel, chame o canalizador para reparar o autoclismo da retrete». E só então o belo rosto de Isabel se iluminou. Há uma reforma ortográfica ameaçando entrar em vigor em 2008 para «unificar» a escrita no Brasil, em Portugal e na África dita lusófona. É uma conspiração de acadêmicos embuçados contra o trema (lingüiça se tornará «linguiça»), o acento circunflexo (vôo, «voo») e o hífen (contra-regra, «contrarregra» – que horror!). Em Portugal, facto se tornará «fato», e lá se vão as consoantes mudas de que eles, com razão, se orgulham. Tal unificação é inócua na prática. Mesmo escrevendo tudo igual, Brasil e Portugal continuarão com suas ricas e necessárias diferenças de vocabulário. Sei disso porque meu livro «Carnaval no Fogo» precisou ganhar notas de pé de página ao ser editado em Lisboa no ano passado. As notas explicavam que picolé é «gelado de palito», pinto é «pênis», ficar tiririca é «ficar furioso», mumunha é «artimanha», pé-frio é «indivíduo azarento», fuzuê é «folia colectiva» e por aí afora. Qual é o problema? Todo mundo leu e entendeu, e vida que segue.
in Folha de S. Paulo, transcrito no Courrier Internacional (edição portuguesa) de 26 de Setembro de 2007