A linguista e professora universitária Margarita Correia rememora a sua infância e a experiência de passar do espanhol como língua primeira ao português, língua de herança e depois idioma em que se encontrou totalmente imersa no regresso a Portugal. Um texto publicado na página de Facebook da autora e aqui disponível por sua amável autorização.
Quando aprendi português havia duas palavras misteriosas que estavam, para mim, intimamente ligadas – véspera e vespa.
Na minha mente de quem estava a dar os primeiros passos numa língua não totalmente desconhecida (afinal eu sempre ouvira falar portunhol), vespa estava para véspera assim como com ameixa estava para amêijoa. Aquilo que eu ouvia como "vespa" deveria ser certamente "vêspera" (Então mas não há nêsperas? Ai os portugueses e a sua mania de comer os sons!), assim como aquilo que eu ouvia como ameixa deveria ser certamente "amêixoa": afinal, "vêspera" e "amêixoa" são duas palavras muito mais bonitas e completas, convenhamos, do que "vespa" e "ameixa", que me soam assim a duas palavras truncadas, às quais falta alguma coisa.
Por fim, ao fim de muito matutar sobre todas estas palavras esquisitas, lá percebi que havia mesmo quatro palavras diferentes – vespa (o bichinho) e véspera (o dia anterior), e também ameixa (o fruto) e amêijoa (o bichinho com conchinhas); também havia nêspera, fruto que eu nunca tinha visto nem comido.
Repare-se que até vir para Portugal não conhecia amêijoas, ameixas eram frutos exóticos e véspera nunca tinha sido coisa em que tivesse pensado. Quanto às vespas, essas já as conhecia, «las avispas», e até me diziam que eu era «una niña muy avispada», que é como quem diz espertinha a tender para o pespineta insuportável.
Descobri o conceito de véspera já em Portugal, porque afinal eu tinha nascido numa véspera.
O meu aniversário é a 10 de novembro, véspera de São Martinho.
Na Venezuela, o meu dia de aniversário não tinha nada de especial, a não ser o facto de ser dois dias depois do de uma das minhas madrinhas e, portanto, celebrarmos normalmente os nossos aniversários em conjunto. De São Martinho e de tudo o que lhe está associado nunca eu ouvira falar.
Mas em Portugal definitivamente o dia do meu aniversário é na véspera de São Martinho!
Ainda por cima, passei parte da minha adolescência em Tomar, perto da Golegã, onde o São Martinho é, como se sabe, celebrado e até há a Feira de São Martinho ou Feira da Golegã, atualmente também conhecida como a Feira do Cavalo.
A noite de São Martinho, que é noite grande na Golegã, não acontece no dia do dito mas na véspera, que é a noite do dia do meu aniversário.
Aqui em Portugal, de resto, a gente celebra sempre de véspera: a noite de Natal é a do dia anterior, a noite de Ano Novo é a do dia anterior, a noite de Santo António ou de São João ou de São Pedro também é a do dia anterior, como se houvesse uma determinação qualquer para celebrar tudo de véspera e não no próprio dia.
Foi assim que a noite do dia do meu aniversário foi, durante alguns anos, uma noite de festa grande, mas roubada – roubada ao santo cujo dia é o dia seguinte – e que pude festejá-la alegremente com os meus amigos, precisamente por ser a véspera do dia seguinte.
O lado chato é que como não nasci no dia de São Martinho, mas na véspera, as pessoas esquecem-se muitas vezes de me felicitar no dia certo, porque a data importante culturalmente é o dia 11 e porque as pessoas não querem felicitar-me de véspera, pois, como é bem sabido, dá azar.
(Enciclopédia Ilustrada. Mote: Véspera)