Sobre a palavra afinal, um artigo de Ana Martins no semanário Sol.
Estamos habituados a que uma palavra tenha um ou vários significados, pertença a uma classe, tenha uma posição previsível na frase. A assunção firme de que as palavras estão escalonadas em várias classificações, e que obedecem a regras de emprego inalienáveis, é apaziguadora. Mas há palavras que não se sujeitam a estes padrões de comportamento: não têm um significado imanente, podem estar em qualquer posição na frase, podem ocorrer em conjunto com outras palavras de função similar, não se acomodam à classe onde as querem pôr, a classe dos advérbios. Enfim, estão sempre gramaticalmente bem empregadas e sofrem, por isso, o desdém dos normativistas.
Porém, estas palavrinhas estão em todo o lado. Veja-se a palavra afinal, ultimamente, com elevados níveis de frequência:
«Cerca de duas dezenas de pessoas receberam hoje em protesto o comboio (…), mas Jaime Silva afinal chegou de carro» (Lusa, 29/05/09).
«Quotas para classificações de mérito [atribuídas a docentes] afinal são transitórias» (Público, 27/06/09).
«Uma "fundação fantasma", uma demissão anunciada, negada e reconfirmada, um negócio contestado (…) e o anúncio de três medidas que afinal já tinham sido anunciadas marcaram ontem o último debate quinzenal (…)» (Público 25/06/09).
Afinal não tem a seu cargo a função de veicular nenhum conteúdo informativo; não tem sinónimos nem antónimos. E, no entanto, a sua presença na frase convoca um conhecimento prévio do leitor, recorda-lhe as expectativas, construídas legitimamente com base nesse conhecimento, e, de uma penada, invalida-lhas; cumulativamente, abre espaço no texto para a explicação do desajuste de realidades.
Acrescente-se a tudo isto a marcação de um efeito de surpresa, se bem que cada vez mais ténue, pois, se para cada expectativa há uma contra-expectativa, surpreende-se quem quer.
Artigo publicado no semanário Sol, na rubrica Ver como Se Diz, de 4 de Julho de 2009.