Numa tarde chuvosa do Rio do Janeiro, por sinal sábado, decido-me a seguir o conselho de alguns dos meus amigos, e vou ver o filme "Língua". Como se trata de uma obra sobre a língua portuguesa, tema que à partida não tem os atractivos de Bridget Jones, imagino que não haverá na sala mais do que meia dúzia de "gatos pingados" - expressão bem curiosa, porque caracteriza não quem designa, mas o número de pessoas que designa. Apenas um princípio de precaução me faz ir um pouco mais cedo.
E foi uma sorte. Bem sei que o filme estava numa única sala do Rio de Janeiro. E que a sala continha exactamente 66 lugares. Mas, tendo chegado com uma hora de antecedência, após alguns minutos na fila, tive direito ao último bilhete. Por outras palavras, ao último "ingresso", para utilizar o termo que os brasileiros usam.
Haveria aqui promoção especial das escolas. Dada a idade do público, suspeito que sim. Mas a verdade é que 20 minutos antes de abrirem as portas, já a fila era espessa e comprida. Não fossem alguns retardatários, e eu estaria na desconfortável situação de ser o último.
Tudo isto para ver um filme de Victor Lopes sobre o português no mundo. Subtítulo: "Vidas em português". Filmagens em Goa, em Lisboa, em Moçambique, no Brasil (sobretudo no Rio de Janeiro). Diga-se desde já que o filme é plenamente conseguido e que consegue não aborrecer com um tema previsivelmente enfadonho. São duas horas de grande imaginação, filmadas com inegável sentido estético e um inesperado humor, e que têm uma pauta musical envolvente e eficaz. O que se pretendia foi obtido: um reconhecimento das diferenças múltiplas de lugares, ritmos, culturas, religiões, danças, modos de falar, relações com a comida ou com o vestuário, e, apesar disto tudo, ou talvez precisamente através disto tudo, uma unidade existe. A língua é a mesma, embora cada um a fale, cante, diga, use, de modos diferentes.
Temos gente desconhecida que anda pelas ruas, reza nas igrejas, vai em procissões, salta para a plataforma dos eléctricos. E temos pessoas conhecidas, ícones da própria presença do português como língua de cultura no mundo. José Saramago, por exemplo, anda pelo cais do Ginjal, com Lisboa ao fundo e a ponte como moldura, para falar do português com aquela ponta de cepticismo que o caracteriza nas grandes causas em que acredita. Temos Teresa Salgueiro e Pedro Ayres de Magalhães, antes de um espectáculo no Rio de Janeiro. E temos João Ubaldo Ribeiro, nas ruas do Leblon, explicando que nada tem para dizer porque não é linguista, e que a sua grande actividade é ler, escrever e andar de boteco em boteco a tertuliar com os amigos. À sua maneira, é também música o que diz, e bebe connosco. E temos Martinho da Vila a falar-nos das viagens que faz, dos espectáculos que dá e da redescoberta da sua aldeia natal, onde agora tem a casa onde se sente bem. E encontramos pessoas de geografias crepusculares (como as terras da Índia, onde o português sobrevive) e pessoas de lugares em crescimento, marcados pela juventude apaixonada que os habita.
Esta juventude que parece reconhecer-se no filme e gostar de o ver. Esperemos apenas que o mesmo suceda quando uma obra tão interessante e estimulante passar em Portugal. A ver urgentemente.
in Fio do Horizonte, “Público” de 19 de Novembro de 2004