A palavra génio é usada tantas vezes e a propósito de tanta gente que qualquer valor que pudesse ter essencialmente já se perdeu. Esta semana, tornou a surgir a propósito da morte de Agustina [Bessa Luís] . Não há dúvida que ela era uma escritora extraordinária, mas chamar-lhe génio tem o inconveniente de a situar na companhia de muita gente que não o é. Mesmo sem falar do «génio estável» (segundo ele próprio) que neste momento é Presidente dos Estados Unidos, temos ouvido a palavra aplicada a artistas de importância limitada, ou até a entidades medíocres que adquiriram proeminência em atividades de negócios, por exemplo. Claro que pode haver grandes inteligências em qualquer área, mas nesses casos é mais natural tratar-se do velho preconceito que nos faz atribuir qualidades superiores a alguém apenas pelo facto de ser rico e ter poder. Aí a palavra não traduz mais do que a irrepreensível tendência humana para venerar os nossos melhores.
Originalmente, génio era o espírito que velava por alguém ou uma família ou um lugar. Passou depois a designar um temperamento, e por fim um talento excecional, às vezes demoníaco ou amaldiçoado pelos deuses. Ecos dessa evolução são expressões como «mau génio» e clichés como o do «génio incompreendido», o «génio maligno», etc. A linguagem está cheia deles, ao ponto de a sua utilização irónica se haver tornado frequente.
Ainda que não seja irónica, é sempre subjetiva. Uma vez estava a falar com um cientista e ele perguntou-me quem era para mim o modelo do génio, o génio por excelência. Eu disse que alguns nomes me ocorriam, mas ele insistiu: se tivesse de designar só um, quem seria? Se calhar Bach ou Leonardo da Vinci, respondi. O meu interlocutor ficou surpreendido, pois julgava que eu ia dizer Einstein. E no entanto, a variedade de opiniões é inevitável, considerando os diferentes níveis de atenção e de paixão que cada um de nós dedica a diferentes assuntos.
Einstein foi um génio, talvez o maior do século XX – não é qualquer pessoa que muda a nossa visão do cosmos – mas Da Vinci, Bach, Shakespeare e Michelangelo, para só referir alguns génios óbvios, realizaram prodígios equivalentes nas suas áreas. Pensar neles faz-nos compreender quão abusada[1] tem sido a palavra. A inteligência cética de Agustina dava jeito nessas alturas.
[1 N.E. – Em vez de «quão abusada tem sido a palavra», é mais correta outra formulação, por exemplo, «quão maltratada...», visto não se recomendar o uso do verbo abusar na voz passiva.]