A dupla coincidência de duas alunas apanhadas com as provas copiadas uma da outra e na confusão com a palavra "consciência" – em mais uma crónica do autor, à volta dos usos do português em Angola. In semanário "Nova Gazeta", de 27/06/2014.
Não é possível que duas pessoas escrevam, num texto de tema livre, exactamente da mesma maneira, com as mesmas vírgulas, acentos e, como se não fosse suficiente, com os mesmos erros ortográficos.
«Falem comigo assim que receberem as provas, tu e a tua colega, n.º 59», foi o que escrevi no verso dos enunciados das duas alunas que se sentavam em polos diferentes, mas cujas provas eram a cópia uma da outra. Perante esta situação, não pensei duas vezes e anulei imediatamente as duas provas.
Ambas pareciam tristes e inocentes e, por muito pouco, não me convenceram de que estaria eu a cometer uma grande injustiça. Antes de a aula começar, uma delas trava-me à porta e, com os olhos vermelhos de bálsamo, tenta justificar-se: «Foi mera conscidência, professor. Não copiei».
A voz trémula da aluna suscitava a curiosidade dos meus colegas e de outros alunos que por nós passavam, alguns dos quais apelando por alguma “clemência”. Quando a colega se aproxima, surpreendentemente diz: «Não copiei, professor. Foi mera conscidência».
Depois de alguma pressão psicológica e com a condição de que só seriam perdoadas se contassem a verdade, uma delas confessa que um colega, o namorado dela, escreveu a composição que se perdeu pelo percurso. Nisso, a outra copia e, só depois, entrega à colega.
«Desculpa pelo erro, professor. Juramos que nunca mais volta a acontecer», prometem as alunas.
Quem sou eu para não perdoar? Perdoei as meninas, mas como castigo retirei-lhes cinco valores cada por tentarem enganar-me outra vez que se tratava de uma «mera conscidência». Porque não era. Podia, com toda a certeza, ter sido mera coincidência.
Trata-se do substantivo do verbo ‘coincidir’, que significa «ser idêntico», «concordar com’, ou ‘acontecer ao mesmo tempo’. Acredito que essa confusão, permitam-me o termo, que não é exclusiva das minhas duas alunas, derive por influência da palavra ‘consciência’, que é diferente de conscidência,que não existe, e de coincidência, que é a forma correcta.
texto publicado no semanário luandense Nova Gazeta, no dia 27 de junho de 2014, na coluna do autor, Professor Ferrão. Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.