« (...) No âmbito da morfologia, Fernão de Oliveira [1507-1567] propõe uma análise inovadora da composição das palavras, da sua origem e do seu carácter recente ou arcaizante. (...)»
A Grammatica da Lingoagem Portuguesa de Fernão de Oliveira foi publicada em Lisboa em 27 de janeiro de 1536. Esta gramática, que nos é modestamente apresentada como uma «primeira anotação da língua portuguesa», dá-nos informações preciosas sobre a língua da época, mas também teoriza sobre a linguagem e as línguas.
À semelhança de outros gramáticos renascentistas das línguas românicas, Fernão de Oliveira pretende explicitar a regularidade e sistematização da língua portuguesa, conferindo a uma língua vulgar, moderna, a dignidade e o prestígio que tradicionalmente eram reservados às línguas clássicas. Trata-se da primeira gramática da língua portuguesa, sendo anterior à de João de Barros, de 1540, que é mais conhecida do público em geral.
Fernão de Oliveira é natural de Aveiro, onde nasceu provavelmente em 1507. A sua formação terá sido aprofundada no convento dos dominicanos em Évora, onde estudou a partir de 1520, tendo sido discípulo do humanista André de Resende. Teve uma vida movimentada, com inúmeras viagens e interesses variados. No período de 1532 a 1536 viveu em Lisboa, onde ensinava gramática portuguesa e latina, tendo sido professor de jovens fidalgos como os filhos de João de Barros, do barão de Alvito e de D. Fernando de Almada. Dedicou a este último a sua "Gramática", que terá sido escrita neste período.
Em 1540 partiu para Espanha e de seguida para Itália. Alistou-se em 1545 numa nau francesa, onde exerceu o cargo de piloto. Passaria depois por Inglaterra, onde terá tido contacto com as ideias da Reforma. Em 1547 voltou a Portugal, tendo sido interrogado pela Inquisição e encarcerado durante três anos, devido a opiniões pessoais de ordem religiosa. Em 1554, D. João III nomeou-o revisor tipográfico da Universidade e Coimbra e, com o título de licenciado, ensinou na universidade a disciplina de Retórica. Era um homem com conhecimentos que abarcavam inúmeras áreas do saber, com interesses múltiplos, multidisciplinares, o que se reflete na obra multifaceteada que produziu.
Para além da Grammatica da Lingoagem Portuguesa, que foi a sua primeira obra, publicou também a Arte da Guerra do Mar em 1555, uma Ars Nautica, c. 1570, e o Livro da Fábrica das Naus, c. 1580. Traduziu parcialmente o tratado De Re Rustica, revelando a sua preocupação com o abandono da agricultura. Como historiador, publicou uma História de Portugal (c. 1581-1582)
Na Grammatica da Lingoagem Portuguesa Fernão de Oliveira descreve a língua da época, o português clássico, que se caracteriza pela normalização e estandardização do idioma, em flagrante contraste com o período antecedente, o do português arcaico, que corresponde a uma fase de intensa evolução. A sua análise revela uma assinalável preocupação com a reflexão sobre os fenómenos da linguagem e a sua descrição das línguas é mais inovadora e menos normativa do que a das gramáticas latinizantes da época que eram gramáticas descritivas das línguas nacionais que se inspiravam nas gramáticas latinas, copiando e adaptando as línguas vernáculas às estruturas da língua latina. O exemplo paradigmático era a Grammatica Castellana de Antonio de Nebrija (Salamanca, 1492) que teve enorme influência no pensamento gramatical penínsular e que inspirou de perto a gramática de João de Barros.
É menos notória esta influência na obra de Fernão de Oliveira, que consegue delinear o sistema fonológico do português da época, em contraste com o do latim, quer pela quantidade, quer pela qualidade dos sons, revelando excelente perceção na descrição fonética. Faz uma descrição dos princípios gerais da fonética, fonologia e da ortografia em mais de 20 capítulos que constituem a área de maior extensão da Grammatica. Também é notória a sua preocupação descritiva e explicativa da variação linguística, quer sob a forma de evolução e mudança diacrónica, quer como diversidade geográfica e social em sincronia. Em relação ao léxico, manifesta preocupações etimológicas, mas também advoga o respeito pelas formas vernaculares, que, como refere, poderiam até ser anteriores ao latim. No âmbito da morfologia, propõe uma análise inovadora da composição das palavras, da sua origem e do seu carácter recente ou arcaizante. Refere a construção do discurso, mas não dedica sequer um capítulo à sintaxe, a área de análise da língua que menos desenvolve. É de assinalar a discussão de aspetos da teoria e descrição linguística e também o seu estilo muito característico, marcado pela reflexão e experimentação, próprio de um intelectual erudito.
Ao longo dos 50 capítulos da Grammatica, o texto de Oliveira revela alguma necessidade de afirmação, que motiva a presença constante de uma argumentação baseada na convocação de vozes concordantes de gramáticos, filosófos e outros autores clássicos de renome, numa marcada polifonia. Assim, cita mais frequentemente o gramático latino Quintiliano [35-96 d. C.], cuja retórica tão bem conhecia, mas também diversos outros. São aspetos específicos do texto da Grammatica a presença de um discurso argumentativo e a utilização de citações de autoridades, convocadas como estratégia de persuasão. Fica patente neste texto a construção do pensamento linguístico de um gramático quinhentista português, uma obra precursora da descrição linguística moderna e muito inovadora no contexto das gramáticas do Renascimento,
Em complemento da descrição linguística, a Grammatica da Lingoagem Portuguesa apresenta também, no Prólogo e nos cinco primeiro capítulos, preocupações de ordem pedagógica, procurando estabelecer objetivos didáticos e também normativos dentro de um conceito de gramática não apenas descritiva, mas também encarada como «a arte que ensina a bem ler e falar».
Cf. Grammatica da Lingoagem Portuguesa, na Montra de Livros
Artigo publicado no jornal Público no dia 24 de setembro de 2021, escrito segundo a norma ortográfica de 1945.