Extracto de Corte na Aldeia (1619), de Francisco Rodrigues Lobo (1580-1622), obra constituída por dezasseis diálogos didácticos. A exaltação da língua portuguesa sobressai aqui como evidente manifestação de resistência à castelhanização forçada num tempo de domínio filipino em Portugal, como resposta a um sentimento de inconformismo perante a perda oficial do idioma pátrio. Reflexo da oposição antifilipina, o autor dedica o seu livro a D. Duarte, marquês de Frechilha e Malagão, um dos principais representantes da Casa de Bragança, geradora da quarta dinastia portuguesa, após a Restauração da Independência (1640).
António José Saraiva e Óscar Lopes apresentam-nos a obra da seguinte forma:
«Um dos aspectos mais importantes da Corte na Aldeia consiste em dar uma expressão de resistência contra a absorção castelhana. Dedicada ao irmão do duque de Bragança, dá razão ao desgosto que sentem a nobreza de sangue e a de cargo com o desaparecimento da corte portuguesa: «retirados os títulos pela vilas e lugares do Reino, e os fidalgos e os cortesãos por suas quintãs e casais, vieram a fazer cortes nas aldeias, renovando as saudades da passada, com lembranças devidas àquela idade dourada dos portugueses». […] O tom patriótico vibra principalmente na apologia insistente, quase religiosa, da língua portuguesa, para a qual o livro contém numerosos preceitos estilísticos. Destes é exemplo o próprio livro, redigido com extremo apuro, e que constitui, pela frase elíptica e preciosamente cortês, e por ser repositório de provérbios e graças idiomáticas, um paradigma de prosa académica» (António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, 10.ª ed., Porto, Porto Editora, 1978, p. 442).
AO SENHOR D. DUARTE,
MARQUÊS DE FRECHILHA E DE MALAGAM
Depois que faltou a Portugal a Corte dos Sereníssimos Reis, ascendentes de V. Exª (da qual as nações estrangeiras tinham tão grande satisfação e as velhinhas tão igual inveja), retirados os títulos pelas vilas e lugares do Reino e os fidalgos e cortesãos por suas quintãs e casais, vieram a fazer Corte nas Aldeias, renovando as saudades da passada com lembranças devidas àquela dourada idade dos Portugueses […]; Com a mesma confiança busca a V. Excelência esta Corte na Aldeia, composta dos riscos e sombras que ficaram dos cortesãos antigos e tradições suas, para que V. Excelência a ampare como protector da língua e nação Portuguesa, honre como relíquia do sangue Real deste Reino e a acredite como espelho e exemplo da virtude e partes soberanas dos Príncipes passados. Aqui ofereço a V. Excelência uma conversação de amigos bem acostumados, umas noites de Inverno melhor gastadas que as que se passam em outros exercícios prejudiciais à vida e consciência; […]
De Leiria, o 1 de Dezembro de 1618.
FRANCISCO RODRIGUES LOBO
DIÁLOGO I
[…]
— […]Porém, deixando isto por averiguar, pois com tanta galantaria e agudeza está tocado o que baste, quero que passemos adiante e, por me fazerdes mercê, que me ensinais se na prática, em voz, e na escritura considerada, tem bom lugar a nossa língua Portuguesa: porque ouço de má vontade a alguns naturais que tratam mal dela e a condenam por grosseira e limitada.
— Uma cousa vos confessarei eu, senhor Leonardo (disse a isto D. Júlio), que os Portugueses são homens de ruim língua, e que também o mostram em dizerem mal da sua, que, assim na suavidade da pronunciação como na gravidade e composição das palavras é língua excelente. Mas há alguns néscios que não basta que a falem mal, senão que se querem mostrar discretos dizendo mal dela; e o que me vinga de sua ignorância é que eles acreditam a sua opinião, e os que falam bem desacreditam a ela e a eles.
— Bravamente é apaixonado o senhor D. Júlio (acudiu o Doutor) pelas cousas da nossa Pátria, e tem razão, que é dívida que os nobres devem pagar com maior pontualidade à terra que os criou. E verdadeiramente que não tenho a nossa língua por grosseira, nem por bons os argumentos com que alguns querem provar que é essa; antes é branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar, breve para resolver e acomodada às matérias mais importantes da prática e escritura. Para falar é engraçada com um todo senhoril, para cantar é suave com um certo sentimento que favorece a música; para pregar é substanciosa, com uma gravidade que autoriza as razões e as sentenças; para escrever cartas nem tem infinita cópia que dane, nem brevidade estéril que a limite; para histórias nem é tão florida que se derrame, nem tão seca que busque o favor das alheias. A pronunciação não obriga a ferir o céu da boca com aspereza, nem a arrancar as palavras com veemência do gargalo. Escreve-se da maneira que se lê, e assim se fala. Tem de todas as línguas o melhor: a pronunciação da Latina, a origem da Grega, a familiaridade da Castelhana, a brandura da Francesa, a elegância da Italiana. Tem mais adágios e sentenças que todas as vulgares, em fé da sua antiguidade. E se à língua Hebreia, pela honestidade das palavras, chamaram santa, certo que não sei eu outra que tanto fuja de palavras claras em matéria descomposta quanto a nossa. E, para que diga tudo, só um mal tem: e é que, pelo pouco que lhe querem seus naturais, a trazem mais remendada que capa de pedinte.
— Folguei estranhamente de vos ouvir (disse Solino) por não ficar tão covarde, como até gora estava, em ouvindo murmurar da língua Portuguesa; e não ousava, ou não sabia dizer a minha opinião, a qual cuidava que me nascia do amor que lhe tenho, e que cada um tem às suas cousas como o corvo aos filhos, e Píndaro às suas trovas. Porém quando um homem tão bem fundado na razão como o Doutor, e tão autorizado em seu parecer, sustenta esta parte, nenhuma haverá já tão rija que me tire o atrevimento.
— Nem a língua (disse Píndaro), pois não há amizade que vos faça perder o costume.
— Perdoai-me (tornou ele) que vos feri por não perder o golpe. E, tornando ao que aqui se tratou para recordar o que começamos, averiguou o Doutor que a melhor maneira de escrever eram os diálogos (ficando meu direito reservado nos livros de cavalarias); tocaram-se louvores da prática e escrituras com muito engenho; declarou-se como a língua Portuguesa não desmerece lugar entre as melhores, para nela se escreverem matérias levantadas, aprazíveis, proveitosas e necessárias. Que falta entre vós para que destas noites bem gastadas, destas dúvidas bem movidas e destas razões melhores praticadas, se faça um ou muitos diálogos que, sem vergonha do mundo, possam aparecer nas praças dele à vista dos curiosos e ainda dos murmuradores?
[…]
Corte na Aldeia, Lisboa, Editorial Presença, 1991