«(...) Os acentos tónicos fora do sítio são uma bênção no meio do trânsito. (...)»
Agora penso: a primeira coisa que devia ter feito antes de começar a escrever era telefonar à Maria Helena Mira Mateus. É uma enciclopédia em matéria de linguística, o grande tema da vida da professora que não se limitou a estudar o trabalho dos outros, mergulhou a fundo e veio à superfície com novas ideias e teorias. Em vez disso resolvi deixar a conversa com a Maria Helena para mais tarde e com mais tempo, agora que já saboreei o livro em que conta Uma Vida Cheia de Palavras.
Então arrisco-me a divagar, e sei que vou encontrar mais perguntas para lhe fazer quando nos encontrarmos. Em breve, espero. Isto tudo porque um dia destes ia numa estrada e, de súbito, a voz de veludo que me indicava a rota – «a 500 metros, saia para a estrada» tal e tal – e que era de uma mulher brasileira, desapareceu dramaticamente e foi substituída por outra que desatou a dar-me ordens em castelhano. Palavras ditas com rapidez, sem misericórdia, sem a paciência (um pouco condescendente mas com alguma dança) da outra que tanto me tem feito rir ao pronunciar "cácem" em vez de Cacém, "márechal" em vez de Marechal. Já me apeguei a ela, por isso não procuro a tecla da voz portuguesa. Deve ser fácil mas escusam de tentar ensinar-me. Os acentos tónicos fora do sítio são uma bênção no meio do trânsito.
É verdade que a brasileira tinha uma maneira ainda mais extraordinária de dizer os nomes das ruas de Salamanca, e isso era divertido mas bastante confuso e ineficaz. A espanhola era muito clara e tinha uma maneira de falar ríspida, mandona, e então desliguei-a. Já basta o que basta. Cállate!
Mas trouxe-me à lembrança algo que tinha lido horas antes nas Autobiografias Alheias de Antonio Tabucchi. É o texto sobre Requiem e chama-se "Um universo numa sílaba, vagabundagem à volta de um romance". Ali conta – ou inventa, que o poeta é um fingidor, dizia o amigo dele – que sonhou com o pai, e que no sonho o pai lhe falou em português, ele que em vida só sabia falar italiano.
Acrescentando um ponto ao que diz a este respeito em Requiem, Antonio diz que, depois de sobreviver a um grave erro médico, o pai ficou sem voz e falava com ele por escrito. Inicialmente, o filho respondia-lhe normalmente, porque o pai não tinha perdido a audição, mas pouco a pouco passou a escrever ele também, e assim se comunicavam, num quadro de brinquedo. Lembro-me de os meus filhos terem um desses quadros, uma caixa vermelha, um retângulo cinzento onde imprimíamos com um estilete desenhos ou escritas e que se apagava com o simples passar de uma régua interior de um lado para o outro.
Tal como as cores do arco-íris
Afirma Tabucchi: «Durante dois anos e meio dialogámos, portanto, em silêncio, através do quadrinho infantil. Só agora me dou conta, com espanto, de que ele nunca me escreveu a pergunta que, logicamente, me devia ter feito: "Porque é que tu não falas, já que podes?" Não o fez, aceitando a minha cumplicidade, como eu aceitei a dele.»
Todo o texto é maravilhoso, cada página contém matéria para nos pôr a pensar, naquela lógica tão típica de Tabucchi de perguntas e respostas, inquietações e caminhos errantes para ir por ali fora, desconhecidos e familiares. Equívocos, diria ele. Mas o que vem aqui ao caso é isto: «Cada língua humana possui a sua própria entoação para exprimir as emoções que Diderot compara com as cores do arco-íris. Cólera, ternura, angústia, melancolia, sedução, ironia: as emoções humanas exprimem-se pela entoação da voz.»
Chegada a casa, fui buscar o Requiem, com aquele prazer especial que uma releitura traz, porque temos a ideia geral do que aí vem mas estamos disponíveis para descobrir mais coisas.
O livro mais português de Tabucchi é Requiem, não apenas por ter sido escrito na nossa língua nem por se passar em lugares que reconhecemos como nossos, ainda que num nível onírico que dispensa a verosimilhança, mas até porque o narrador se delicia com um sarrabulho e lê A Bola. Por ele passam personagens sucessivas – umas essenciais na vida do escritor, outras apenas interlocutores ocasionais – em ambientes desertos de gente que não seja indispensável à história. É quando se prepara para uma jogada de bilhar, um masser impossível, que o narrador ouve do maître da Casa do Alentejo uma frase que, desculpem qualquer coisinha, me faz soar campainhas: «Em toda a minha vida nunca soube estar-me nas tintas, sempre me importei com isto e com aquilo.»
Vou telefonar à Maria Helena e talvez contar-lhe isto. Ou simplesmente ouvir a sua voz sábia.
* Crónica da jornalista Ana Sousa Dias publicada no Diário de Notícias de 9 de junho de 2018.