«Se aterrássemos num qualquer lugar do Portugal dos anos 40, 50 ou 60 do século passado, será que iríamos encontrar génios da escrita e gente que, sem dificuldade, alinhavaria textos impecáveis num qualquer caderno que lhe déssemos?»
De vez em quando, lá oiço alguém afirmar convicto: antigamente, os Portugueses escreviam muito melhor. A afirmação vem, habitualmente, confirmada por um «só não vê quem não quer» a servir de ponto final à discussão.
Estou em crer que quem tal afirma revela alguma ingenuidade. No fundo, está a deixar-se levar por uma imagem idealizada do «português de antigamente».
Pergunto a quem está convencido de que antigamente os Portugueses escreviam bem e que, daí para cá, passaram a escrever mal: quando foi essa época em que escrevíamos muito melhor?
Se aterrássemos num qualquer lugar do Portugal dos anos 40, 50 ou 60 do século passado, será que iríamos encontrar génios da escrita e gente que, sem dificuldade, alinhavaria textos impecáveis num qualquer caderno que lhe déssemos? E com as vírgulas todas no lugar? E com a velocidade com que hoje todos nós escrevemos nos facebooks e mensagens da nossa perdição?
Podia dar-se o caso de termos sorte. Mas se me dizem que seria fácil encontrar quem escrevesse bem numa população que, na sua maioria, tinha profissões em que não era preciso escrever nada durante anos — é porque nunca pensaram assim tanto no país onde vivemos, um país que só ao longo de um lentíssimo século XX se foi libertando do analfabetismo em que sempre estivemos à frente dos nossos vizinhos (um processo, aliás, que ainda não terminou).
No tal antigamente, a maior parte dos portugueses não escrevia. Haverá quem prefira que poucos escrevam — sempre evitam ler textos com erros. Mas até isso é uma ingenuidade: olhamos para o passado e, de todos os textos de quem escrevia (e eram poucos os que sabiam fazê-lo), só vemos os textos que sobreviveram ao turbilhão do tempo, só nos lembramos dos bons textos.
É um erro de análise fácil de explicar: como a memória não é perfeita, lembramo-nos mais facilmente daquilo de que gostámos do passado — e acabamos por idealizá-lo. Depois, claro, esquecemo-nos de compensar a fortíssima tendência que os nossos cérebros têm para confirmar aquilo em que já acreditam. É por isso que muitos perpetuam a ideia idealizada do passado, julgando-a sinal de forte lucidez — e ainda sentem um certo desespero perante quem não vai nessa cantiga. Pois se é tão óbvio!
É verdade: o presente só é idealizado por quem está desatento. Há tanto que nos separa dum mundo óptimo, nisto da língua e no resto… Mas o optimismo em relação ao passado é mais matreiro, porque a nostalgia embriaga e somos mais facilmente enganados pela memória, que é uma peneira que, do passado, nos dá apenas os diamantes. A lama, essa, fica escondida na aridez dos números e de alguns livros de História.
Sejamos exigentes com o presente, claro. Sejamos ainda cautelosos quanto ao futuro. Mas não sejamos ingénuos quanto ao passado: há cem anos, muitos não sabiam escrever, muitos dos que sabiam escreviam mal (sem culpa nenhuma — não tinham tido muita instrução e não precisavam de escrever no dia-a-dia), milhões de portugueses passavam a vida sem pegar num livro, o português-padrão era desconhecido de tantas e tantas famílias — e, já agora, a língua mudava como hoje muda e os jovens também tinham os seus códigos e as suas modas. Havia excelentes exemplos de boa escrita, mas eram excepções, como em todas as épocas. Também hoje há tanto de mau — e umas boas excepções, que não são fáceis de encontrar, como nunca foram. Comparar a escrita dos dias de hoje apenas com os bons escritores do passado é um erro muito mais grave que qualquer cedilha fora do lugar.
Podemos, aliás, olhar para as épocas de ouro: no século XIX, encontramos uma população em grande parte analfabeta e, entre quem escrevia, uma língua pejada de estrangeirismos (galicismos), com muita escrita a seguir fórmulas gastas, como na literatura de todas as épocas. Os escritores de que nos lembramos são precisamente aqueles que ultrapassaram a habitual mediocridade.
Já se olharmos para o século XVI, encontramos uma língua também cheia de estrangeirismos (castelhanismos) e, olhando para a ortografia, sem regras minimamente estabilizadas. Camões, se hoje ressuscitasse, ficaria pasmado com a regularidade da escrita do século XXI — e dar-nos-ia, sem dificuldade, exemplos de má escrita da sua época.
Cada época tem os seus problemas. Na nossa, temos a dificuldade que é passar a viver pela escrita. Hoje, escrevemos a todo o momento e temos de aprender a lidar com os diferentes graus de formalidade também pela escrita. Não é fácil. Depois, temos os anglicismos em excesso, que seguem a velha tradição portuguesa de ter uma obsessão por uma determinada língua estrangeira. Lembro-me ainda da falta de revisão de muitos textos publicados, decorrente da multiplicação dos canais através dos quais é possível levar textos ao público. Enfim, não será difícil encontrar problemas na escrita da nossa época. Nunca houve, no entanto, tempo em que a língua estivesse boa e sólida, bem falada e bem escrita, pronta a entrar em decadência. Aliás, não houve época em que não se ouvissem as mesmas queixas que hoje ouvimos da boca de quem está convencido de que nunca se falou ou escreveu tão mal como agora.
O presente desespera-nos: está à nossa volta e há muito a fazer. Mas não ser ingénuo quanto ao português de agora não implica que tenhamos de ser ingénuos quanto ao português de antigamente. Escrever bem também implica evitar esses chavões sobre o passado. Já que queremos ser exigentes com a língua, convém também ter alguma exigência com o discurso sobre a língua…
Artigo incluído no blogue Certas Palavras em 5 de abril de 2021.