O que está para além da simples classificação gramatical das palavras – também podia ser o título deste artigo de Ana Martins no Sol.
Recebemos no Ciberdúvidas muitas perguntas relativas à classificação de palavras. No ensino básico e no secundário, o professor empenha um esforço continuado a fazer a catalogação das palavras do português. É algo de semelhante ao que se passa na biologia, com as suas vastas classificações de animais e plantas. Aliás, é curioso ver que a linguagem humana foi, durante séculos, conceptualizada como se de um organismo vivo se tratasse: com um nascimento (há ainda quem ande à procura da origem das línguas) com uma morte (a língua pode morrer se não tratarem dela), com uma evolução ou crescimento (não falamos hoje como D. Afonso Henriques no seu tempo) e com uma família (a família das línguas românicas, anglo-saxónicas, eslavas, etc.).
Mas o que é que se fica a saber com a classificação de uma palavra? Muito pouco. Veja-se, por exemplo, o caso das palavras ainda e já. São advérbios de tempo, tal como ontem e amanhã. Mas enquanto ontem e amanhã têm a função de localizar a acção numa linha temporal que tem o «agora em que digo isto» como ponto de referência, já e ainda dizem-nos, por um lado, que o próprio processo de realização da acção consome tempo e, por outro, que essa acção está na iminência de começar ou de acabar, e desenham esta simetria: «Ainda não chove — já chove — ainda chove — já não chove».
Mais: já e ainda dizem-nos qual a atitude do locutor face àquilo que diz. Por exemplo, (1) o locutor considera excessiva a duração da acção, em «o caso Freeport ainda está em investigação»; ou (2) o locutor apresenta a alteração de uma situação como obrigatória, em «a lei eleitoral para o Presidente da República já é presencial» (Alberto Martins, RTP, 3/02/09); ou (3) o locutor assinala a cessação de uma expectativa, em «Perguntas de "verdadeiro ou falso" já não mudam nos exames nacionais de 2009» (Público, 28/1/09).
Lá está: a língua tem razões que a gramática desconhece.
Artigo publicado no semanário Sol de 7 de Fevereiro de 2009, na coluna Ver como Se Diz.