Em referência a uma mulher, se dissermos ou escrevermos «ela é a melhor cantora do mundo», excluímos os homens que também cantam. Mas poderemos formular uma frase como «ela é o melhor cantor do mundo», querendo dizer que, entre mulheres e homens, ela é a melhor? Eis o tema de uma crónica de Edno Pimentel, à volta de uma questão que, como no resto da lusofonia, também levanta problemas no português de Angola. Texto publicado no semanário luandense Nova Gazeta no dia 22/10/2015, no qual se mantém a ortografia conforme a norma ainda aplicada em Angola, anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Ser professor tem dessas coisas, como, às vezes, ser apanhado «com as calças na mão». E é claro que, nesses casos, convém que sejamos humildes. É melhor que os estudantes esperem pelo conhecimento fidedigno e transmitido de forma correcta. Antes assim: «amanhã falaremos disso com mais propriedade», dizia um ex-professor. Os mais experientes sabem como «se devem virar» em situações embaraçosas.
Temos responsabilidades acrescidas, devemos pesquisar, estar actualizados sobre o que gira ao nosso redor. Estar ligado deve ser a palavra de ordem, sobretudo quando se trata de áreas com as especificidades, como é o caso do português, que está constantemente a fazer-nos escorregar ‘em cascas de banana’.
A mais recente escorregadela foi quando alguém, durante uma correcção, defendia que a frase «Joaquina foi o quarto professor expulso» estava errada, pois, em seu entender, deveria ser «Joaquina foi a quarta professora expulsa».
Até aí não havia qualquer problema, ambas as frases estão correctas. Mas o uso de uma ou de outra frase vai depender necessariamente da intenção, do que se pretende informar.
O professor Cláudio Moreno já teve o cuidado de esclarecer isso. Como o género feminino sempre exclui o masculino, se se escreve que «a Joaquina foi a quarta professora expulsa», quer afirmar-se que três professoras tinham sido expulsas. Mas não foi o caso, porque «o quarto professor» junta o masculino e o feminino.
Cláudio Moreno vai ainda mais longe e cita, como exemplo, Mattoso Câmara Jr.: «A marca do plural é o -S, enquanto o singular se assinala pela ausência desse -S; a marca do feminino é o -A, enquanto o masculino se assinala pela ausência desse -A. Ninguém duvida que aluna e cantora sejam femininos, porque ali está a marca; ninguém duvida que aluno, mestre e cantor sejam masculinos, porque ali NÃO está a marca. Por isso, sempre que queremos ser genéricos, podemos usar o singular, masculino (número e género não-marcados).»
Por exemplo, «O angolano trabalha mais do que se pensa» (entenda-se: todos os angolanos). Exactamente por perceber essa indefinição do género masculino das palavras é que as pessoas sentem a necessidade de especificar, quando mais de um sexo estiver envolvido. E os brasileiros, por exemplo, não perdem tempo: «tenho três filhos homens», «tenho três filhos: um rapaz e duas meninas» — o que não acontece com «tenho três filhas».
Essa marca feminina exclui automaticamente todos os homens. Se alguém disser que «a Ary é a cantora mais bem paga em Angola», quer dizer que, entre as cantoras – só mulheres –, «a Ary é a mais bem paga em Angola». No entanto, se se disser que «a Ary é o cantor mais bem pago em Angola» está dizer-se que, entre todos os cantores (homens e mulheres), «Ary é o cantor que recebe mais cachê».
Para desfazermos essa dúvida, podemos inverter a ordem das palavras e ficaremos com: «Em Angola, o cantor mais bem pago é a Ary.»
Cf. Mais bem vs. melhor + "Norma ou desvio do português de Angola"
Crónica da autoria de Edno Pimentel e publicada com o título original "Joaquina foi o quarto professor" na coluna Professor Ferrão do jornal luandense Nova Gazeta, em 22/10/2015. Manteve-se a ortografia conforme a norma ainda aplicada em Angola, a qual é anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.