O projecto de revisão curricular do Ensino Secundário em Portugal teve já a reacção de vários sectores como escritores e professores no que diz respeito à disciplina de Literatura Portuguesa que é remetida para um lugar menor, colocando-a como cadeira de opção para todos os cursos, excepto para os alunos de Línguas e Literaturas.
Da mesma forma, a Sociedade Portuguesa de Física contestou junto do Ministério de Educação português o facto de se ter relegado para o estatuto opcional as disciplinas de Física, Química, Biologia e Geologia, quando estas deveriam ser as nucleares para se ingressar em cursos como de Medicina, Farmácia, Ciências e Tecnologias.
Revejo, então, em muitos anos de serviço no Ensino Secundário, as várias reformas que se sucederam.
Logo após o 25 de Abril, a preocupação natural foi destruir estruturas anquilosadascom o objectivo de se criar uma escola democratizada com a unificação do ensino, arepresentatividade dos alunos e dos pais nos Conselhos Pedagógico e Disciplinar, abrindo-se ao diálogo com estas e outras entidades complementares, como autarquias, freguesias e instituições culturais. Foi um trabalho necessário numa sociedade que balbuciava os primeiros passos da democracia e em mutação profunda.
Com altos e baixos, excessos e algumas confusões, as reformas que se foramoperando iam deixando para trás o espírito ditatorial do nosso passado, apostando-senuma rápida transformação através de um ensino mais virado para o conhecimento prático.
Ficavam, no entanto, para trás também alguns valores que se tinham ganho dentro da resistência e da raiva de cada um, como a procura da verdade com um sentido crítico e lúcido que despontava muito cedo na leitura proibida, no cinema, nas conversas de café, na música de qualidade, no teatro amador das cidades suburbanas e operárias, na arte dos pintores, nas tintas para os dinossauros, na denúncia política dos panfletos, enfim, em tanta coisa, mas sobretudo, nos nossos heróicos escritores neo-realistas, surrealistas, futuristas, concretistas, subtilistas com subtil arte para fazer passar o que era preciso comunicar .
Na verdade, na ânsia de se pragmatizar o ensino, não se encontrou a engrenagem necessária para continuar a alimentar a chama da revolução interior nos nossos adolescentes e jovens, como se tudo estivesse já consumado e resolvido e nada mais fosse necessário, sem se entender que a democracia é uma aprendizagem e uma lutadiárias só conquistadas com muita ponderação e conhecimentos. Não é fácil, por isso não se poderia apostar no facilismo dos meios e métodos educativos, como se fez.
Em relação ao ensino da língua portuguesa e das línguas estrangeiras, saiu-se de um extremismo de sistematização gramatical para se cair noutro extremismo não menos danoso que é o da gramática apenas funcional com anulação absoluta das suas leis e regras. Assistimos mais recentemente ao recuo nestas directrizes por se ter chegado à conclusão, tarde demais, através dos resultados desastrosos, que fora uma apostaerrada. Entretanto, perdia-se uma geração.
Conhecemos bem o que significa em termos práticos o carácter opcional de uma disciplina. É o caso do Francês, língua românica e das mais faladas no mundo, que, em nome da globalização e do domínio da língua inglesa, foi perdendo o seu estatuto e importância no elenco dos currículos até se chegar hoje quase à sua extinção. Decisãoabsolutamente absurda, pois o seu ensino não obstava nem prejudicava a aprendizagem do Inglês como sempre sucedeu.
Assim, se foram compondo reformas que, simultaneamente, não tiveram em conta os outros níveis de ensino, como as universidades e institutos, onde se despovoaram cursos e se lançaram para o desemprego milhares de professores licenciados.
Fazendo, então, um balanço dessas reformas, chegamos à conclusão que se houve aspectos bastante positivos, pelo menos no que diz respeito à democratização do ensino e à desinibição dos comportamentos, como ainda o recurso mais à compreensão do que à memória, por outro lado, não contribuíram, na maior parte dos casos, para um progresso intelectual de que o conhecimento da própria língua é fundamental e base de todos os outros conhecimentos. Antes, pelo contrário, levaram a um decréscimo e, diriamesmo, à degradação tanto no uso da língua pelos seus falantes como no aprofundamento da cultura portuguesa.
Aliás, é do vulgo geral que cada vez se escreve pior, que há licenciados a darem erros ortográficos abissais, não falando na organização sintáctica da frase, no uso da pontuação e ainda na falta de conhecimentos de cultura básica.
O estado actual da língua chegou inclusivamente a afligir os governantes quequiseram impor medidas extremas como o português e a matemática virem a ser cadeiras eliminatórias em todos os cursos.
Eis senão quando surge este projecto de revisão curricular para o Ensino Secundárioque o governo quer pôr à discussão e a polémica acende-se porque é, de facto, assustador que tenha sequer passado pela cabeça duma equipe de trabalho, que deveria ser minimamente responsável, tais ideias tão peregrinas. Propõe-se transformar a única disciplina que os alunos têm da sua história cultural e literária e que se liga à prática mais nobre da língua portuguesa, numa disciplina de carácter opcional.
O mesmo espanto se verifica em relação à Física, Química e à Biologia, também remetidas, nesse documento, igualmente para o estatuto de cadeiras de opção.
Ficamos, então, a congeminar o que poderá estar por detrás destas propostas que iriam afectar não só a formação dos jovens, como atirariam para o desemprego mais outros milhares de licenciados e ficamos naturalmente assustados, porque não queremos de modo nenhum pensar que se trata dum plano fruto duma política economicista.
Como Professora de Língua e Literatura Portuguesas e como presidente da Sociedade da Língua Portuguesa subscrevo inteiramente a carta enviada ao Senhor Ministro da Educação português, assinada por mais de meia centena de escritores e professores, manifestando toda a minha tristeza e desaprovação por estas propostas que, a serem aprovadas, vêm contribuir para um empobrecimento gradual de valores na juventude portuguesa, o que constitui um atentado ao direito pleno da sua cidadania.