«Gosto de contar estas histórias aos mais novos, especialmente os meus estudantes, que não sabem (e não têm como saber) como era Portugal há 50 anos (...)»
Comecei a dar aulas de português e francês, em março de 1981, i.e. há mais de 40 anos, no então Liceu Gil Vicente, em Lisboa. Fui professora do ensino básico público (com passagem de dois anos por um colégio privado) durante cerca de 10 anos, sucessivamente como eventual (não recebia salário nos meses de julho, agosto e setembro), provisória, efetiva-provisória e efetiva, estatuto que adquiri poucos dias antes de abandonar o ensino básico público, em dezembro de 1990, para iniciar funções de assistente estagiária na Faculdade de Letras, onde ainda hoje sou professora auxiliar. Gostei muito de ter sido professora do básico, mas não voltaria a essa condição, porque, para tal, teria que ter uma energia e uma vitalidade que já não tenho.
De acordo com dados disponíveis na Pordata, em 1971 havia 1 147 082 estudantes no ensino básico regular, tendo esse número começado a crescer em 1976 e atingido 1 528 011 em 1981. O pico de crescimento do número de estudantes do básico (1 590 552 alunos) ocorreu em 1986, ano a partir do qual a quebra de natalidade começou a fazer decrescer a população escolar. No ensino secundário, passámos de 25 726 alunos inscritos em 1971 para 172 180 em 1981, já para não falar do ensino superior, do qual apenas temos dados a partir de 1978...
O aumento de 33% da população escolar do ensino básico entre 1971 e 1981 (38% até 1986) teria que ter impacto no ensino, que se viu confrontado com falta de escolas, equipamento, material escolar, professores, e com turmas sobrelotadas de uma população que incluía todos aqueles cujas famílias até então nunca tinham tido oportunidade de ir além da escolaridade obrigatória, de seis anos apenas a partir de 1964. E quantos a concluíam? Tudo isto justifica que eu tenha começado a dar aulas quando ainda frequentava o 2.º ano da Faculdade, na primeira escola que inscrevi no formulário do miniconcurso.
No Gil Vicente, em 1981, lecionava 12 horas por semana, tinha turmas do 7.º ano de francês e do 10.º ano de português. As turmas eram todas de mais de 30 alunos, mesmo quando incluíam alunos que claramente tinham problemas graves de desenvolvimento. Obviamente, eu não tinha formação suficiente para desempenhar aquelas funções, assim como a maioria dos professores da época, especialmente os mais novos, de português, francês e matemática. Por isso, ainda hoje lembro e penso nos meus alunos de então e no quão pouco a escola e eu própria tínhamos para lhes dar. Ainda hoje me pergunto como foi possível chegar aqui.
Gosto de contar estas histórias aos mais novos, especialmente os meus estudantes, que não sabem (e não têm como saber) como era Portugal há 50 anos e que, como tal, não têm defesas contra os crónicos detratores do sistema, pregadores das desgraças da democracia e das instituições democráticas, fanáticos do elitismo e da sociedade estratificada, defensores do «antigamente é que era bom», avessos à liberdade e aos direitos que a maioria de nós apenas conquistou depois de 1974.
Na semana passada celebrámos de muitas formas o início do ano letivo presencial, como se fosse único e primordial. Quis, por isso, partilhar algumas pinceladas do retrato do ensino básico na capital do país, há 40 anos, para que nunca esqueçamos de onde viemos e para onde vamos. Oxalá vivamos cada instante do ano letivo de 2021-2022 com a alegria do (re)encontro e a sofreguidão de quem sabe que passará num instante.
Crónica publicada no Diário de Notícias no dia 20 de setembro de 2021.