Os “maquisards” da língua - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Os “maquisards” da língua
Os “maquisards” da língua

A última frase de um texto transcrito pelo Ciberdúvidas é «E todos têm razão» (1). Frase essa que me faz refletir/reflectir muito sobre as discussões ininterruptas que tenho presenciado ou de que tenho notícia nos últimos tempos. Discussões a propósito, precisamente, da propriedade de quem fala e como fala o Português e da razão que seria um atributo distribuído com parcimônia/parcimónia aos falantes da língua e, apenas, a alguns falantes.

Dessas discussões fica a sensação de que há um reduto de resistentes que cultivam e cultuam a Língua Portuguesa na sua expressão autêntica e avalizada por um suposto "Grande Irmão" que ninguém nunca viu mas que manda mensagens pelas gramáticas e dicionários conforme a escolha feita pelos vigilantes da Língua Portuguesa que estejam com a palavra – condenatória em geral – no momento.

Assim, seriam esses integrantes de um "maquis" lingüístico/linguístico que deteriam os cânones para determinar o que é correto/correcto e quem está com a razão no uso das estruturas da língua. Lamento usar aqui o termo francês que foi o emblema de valorosos indivíduos que lutavam contra uma real ameaça hegemônica/hegemónica e daninha enquanto o atual/actual "maquis" tem um sentido de isolamento voluntário e discriminatório mais parecido com regimes de "apartheid" que todos devem conhecer, fundados em idéias/ideias depreciativas sobre o que é diferente.

Tenho de concordar com alguns estudiosos da Lingüística/Linguística que dizem que essa é, talvez, a única ciência que, nos dias de hoje, ainda sofre de uma tremenda falta de divulgação entre a comunidade leiga. Essa característica leva ao surgimento de comportamentos vários em direção/direcção à criação de grupos de oposição aos comportamentos que, não fosse por esses vigilantes, sequer seriam percebidos como desviantes, já que são de uso corrente mesmo entre falantes de excelente nível de escolaridade e pesquisadores do fenômeno/fenómeno lingüístico/linguístico.

Um exemplo disso é a transformação do verbo estar que vai aos poucos sendo conjugado, na modalidade oral, sem a primeira sílaba em todas as pessoas verbais, dando origem às formas: /tou/, /tás/, //, /tamos/, /tão/. Poucos, ainda que com um nível apenas razoável de escolaridade, escreverão essas formas, mas quase ninguém será capaz de jurar que jamais as pronunciou em uma ou outra circunstância.

Por outro lado, há uma supervalorização do erro (2) como se, ao ressaltar o erro, fôssemos em direção/direcção à correção/correcção. Como se ao nos indignarmos com fatos/factos que dizem respeito unicamente à língua falada estivéssemos buscando a cura desses desvios que, muitas vezes, fazem parte das idiossincrasias da modalidade falada e em outros momentos revelam, isto sim, problemas de base no ensino de Português e no tipo de abordagem que tem sido dispensada à matéria em nossas escolas.

Não se pode simplesmente dizer a um jovem de 13 anos que a maneira como fala em casa e que reproduz com colegas e professores na escola é inaceitável e exigir dele que substitua por decreto essa variedade aprendida em casa pela outra ensinada na escola e veiculada pelas obras literárias por tratar-se da forma correta/correcta, elegante e desejada da língua na sua versão culta.

O que é indispensável, e raramente posto em prática, é mostrar ao aluno que, ainda em se tratando de uma mesma língua, há variedades distintas e que essas variedades têm lugar e hora para acontecer. Se ele usa uma determinada variedade em casa, deve aprender na escola que em outros locais e circunstâncias deverá evitar essa variedade e adotar/adoptar uma outra de forma a obter sucesso e inserção social num mundo multifacetado como o atual/actual. Mundo esse onde o sucesso é determinado não só pela aparência física e habilidade de conviver em diferentes situações sociais e profissionais, mas, igualmente, pela habilidade na escolha das expressões lingüísticas/linguísticas mais adequadas a cada circunstância e aos diferentes interlocutores que nelas atuam/actuam.

Não será, portanto, rejeitando a variedade aprendida em casa ou entre os amigos que vamos levar os jovens a tornarem-se adultos competentes cultural e lingüisticamente/linguisticamente, mas acrescentando a essa variedade primeira outras menos óbvias que sirvam de instrumental para a busca de autonomia social. E dar autonomia social é tornar o falante em formação capaz de fazer escolhas no instrumental lingüístico/linguístico existente de acordo com as necessidades pragmáticas que se apresentam em função do meio em que ele atua/actua. Quem sabe se assim não evitaríamos de forma mais eficaz a ocorrência de frases que tanto ofendem a vista como «à muito tempo que não o vejo» ou cartazes anunciando «espetaculos publicos»?

O atual/actual Presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, demonstrou sensibilidade e "savoir-faire" não apenas político como também pragmático-lingüístico/linguístico ao afirmar num discurso: «Vocês lembram que eu falava "menas", agora eu aprendi a dizer "concomitantemente"». Ora, ele não passou de 0 a 1 numa mudança dicotómica/dicotómica, mas revelou que além de ainda deter o conhecimento e a consciência da variedade mais simples, própria de uma grande faixa de população que tem baixa escolaridade mas que integra a parcela produtiva da sociedade e tem poder de voto, o Presidente havia agora ampliado a sua "performance", demonstrando competência em uma outra variedade, própria de outra parcela da população, igualmente produtiva e votante.

Com essa frase Lula resume uma realidade complexa que implica em reconhecimento das estruturas sociais tremendamente díspares num país do tamanho do Brasil, sem esquecer que essa disparidade só pode se fazer representar através da língua comum que se manifesta pela boca de todos os habitantes ainda que sob diferentes variedades.

A disparidade não é, porém, privilégio da comunidade de falantes de Português no Brasil; a disparidade é própria de qualquer comunidade de fala. Acredito, portanto, que algumas ou muitas das observações que aqui faço serão aplicáveis às comunidades falantes de Português em Portugal, em Angola, em Moçambique, onde, como diria o genial Mia Couto (3) : «Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão.»

Na verdade, não são apenas as ex-colônias/colónias que receberam a Língua Portuguesa como varinha de condão, que na boca dos vigilantes às vezes vira grilhão, que estão ajeitando "o pé-língua" ao novo "chão-realidade", é cada um dos falantes em cada um dos oito países da CPLP que a cada minuto de existência transforma o mármore da língua em representação de uma subjetividade/subjectividade.

Melhor fariam os novos "maquisards" se tentassem explicar/explicitar outras práticas lingüísticas/linguísticas adequadas a cada situação, e alimentar cada vez mais a discussão sobre os diferentes usos da língua, e não sobre ter ou não ter razão. Junto-me ao autor da frase do início e acrescento: não interessa ter razão.

 

 

1 Regionalismos, por Appio Sottomayor

2 Falar mal na rádio e na TV, resposta de Susana Correia, 12.03.03

3 Ciberdúvidas, Antologia, 1997

 

Sobre a autora

Ida Rebelo é uma linguista brasileira. Doutora e mestre em Estudos da Linguagem, Descrição do Português para o Ensino de Português Língua Estrangeira, pelo Departamento de Letras, da PUC - Rio de Janeiro; licenciada em Letras Português-Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro