Os Descobrimentos e eu ... (8) - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Os Descobrimentos e eu ... (8)

A Goa em que eu nasci tinha uma população com uns 300 mil católicos distribuídos por umas 109 paróquias, além de umas quatrocentas capelas, incluindo uma centena com capelães residentes, e um sem número de oratórios onde se celebravam funções religiosas. Enquanto algumas freguesias tinham somente algumas centenas de católicos, havia outras com uma população entre 6 e 12 mil paroquianos. Para cuidar de tanta messe havia uns 700 padres no território!

Para sustentar o zelo das almas e os padres que cuidavam delas, havia festas mais ou menos aparatosas durante o ano todo. Eram ocasiões para muitos fregueses emigrantes na Índia vizinha visitarem as suas famílias em Goa, e quando o mordomo da festa fosse um Bomboicar podia-se esperar mais do que uma banda dos mahar em que somente um ou dois farazes tocavam uma corneta ao acompanhamento duma caixa. Tudo começava com a fama. Nessa tarde reunia-se a comunidade paroquial para o benzimento dum painel com uma pintura do padroeiro da igreja ou do santo cuja festa se celebrava. O painel era fixo à uma haste ou maddi (tronco duma arequeira) pintada de branco e decorada com folhas de palmeira brava (bil'ló madd) e bandeirolas. Içava-se o painel no adro da igreja ou da capela. A cerimónia anunciava o início da novena. O estrondo dos sinos, as explosões das recâmaras, e muito foguetório transmitiam o acontecimento para o resto da aldeia e ainda para as populações circumvizinhas.

Uma novena ou nove dias de preparação para uma festa consistia em missa de novena com uma concorrência mais do que usual. Mais importante era a cerimónia vespertina de Salves. Era assim conhecida essa para-liturgia por causa do canto de Salve Regina em honra da Nossa Senhora a quem eram dedicadas muitas festas mais importantes. Meninos vestidos de anjos, com asas e coroas, levavam salvas com flores, e cantavam o Salve. Satisfaziam também a vaidade dos pais e dos familiares. Sermões diários por um pregador convidado de fora da aldeia faziam parte importante da novena. A solenidade e a importância social e económica do mordomo da festa era geralmente comunicada aos paroquianos através da escolha do pregador. Um monsenhor ou um cónego com sapatos de fivelas, de batina e romeira com botões vermelhos, e com um barrete preto de borla vermelha asseguravam a posição social do mordomo. Obviamente, era mais caro arranjar esse tipo de pregadores.

Na tarde anterior ao dia da festa cantavam-se as Vésperas com uma solenidade que se distinguia das Salves. Durante a veneração da imagem do orago ou santo festejado era prática distribuir aos confrades que participassem na procissão do santo vestidos de opas e murças da irmandade umas estampas do santo. Nas costas do santinho ficavam registados os nomes dos mordomos e a data da festa. Mas o que atraia sempre um maior número de paroquianos, e ainda os residentes não-cristãos da aldeia, para as Vésperas eram os fogos de artifício. Falta de fôg reduzia o entusiasmo dos católicos goeses, e também a reputação do mordomo da festa. Era também a qualidade da banda musical que decidia perante a opinião dos fregueses a importância social e económica dum mordomo. O número dos músicos da banda também contava, e havia situações em que os mais observantes podiam identificar os músicos mudos, a quem os goeses chamavam mone muzk em Concani. Estes sopravam uns instrumentos sem produzir qualquer som.

O dia da festa iniciava-se com o toque da alvorada ao romper do dia. A banda da festa tocava umas peças musicais na residência do mordomo. Celebrava-se uma ou mais missas antes da missa solene da festa. Quase todos os fiéis da aldeia tomavam parte numa dessas missas (dakttem mis ou missa rezada, como então se dizia) e comungavam durante essas missas por ser mais difícil guardar o jejum que era obrigatório nesses tempos para os comungantes e não terem de esperar até a missa da festa (Vhoddlem mis), que só começava por volta das dez ou mais tarde, e não se chegava à hora da comunhão antes do meio dia. Quem quisesse comungar durante essa missa corria o risco de desmaiar com fome e calor criado pelo aperto dos participantes e das velas que ardiam! Os fatos de festa e o clima de Goa eram já suficientes para sufocar as pessoas, mas as festas eram mais importantes para ostentar os vestidos e os fatos. Para muita gente da aldeia era mesmo uma ocasião para adquirirem nova roupa.

A solenidade religiosa da festa acabava com a procissão do santíssimo com pálio e uma benção final em que se cantava O Salutaris Hostia. Todo o latinório litúrgico fazia parte integral da liturgia de então. Não importava se ninguém compreendesse o sentido daquilo. Quando o Vaticano II decidiu trocar quase tudo pela língua vernácula, houve muitos que se queixaram da perda do sentido de mistério que eles sentiam anteriormente. Os hindus ainda mantêm a sua tradição de mantras em sânscrito, e não deixam de ser mais crentes ou prezar os valores morais menos do que os católicos. 

No que diz respeito ao latim como parte do quotidiano religioso pouco compreendido pelos católicos de Goa, lembro-me duma história (anedota?) que me contaram: Salu (Savador), o barqueiro ( tarió) da aldeia, já tinha melhorado muito a sua capacidade financeira, e decidiu ser o mordomo da festa da sua igreja. Conta-se que insistiu com o pároco que o hino O Salutaris fosse repetido, e com um anúncio prévio que esclarecesse ao povo que a repetição era em homenagem ao Salu Tarió, o mordomo da festa!

A festa não acabava na igreja. À saída, trocavam-se as saudações de Bomfest, e não se ia embora sem visitar a feira que se reunia nessa ocasião. Algumas feiras eram muito especializadas, para onde acorria gente de Goa inteira para fazer compras. Uma dessas é a feira da festa de Nossa Senhora dos Milagres, na cidade de Mapuçá. É uma feira muito concorrida para compra de mobília, além de muitos outros produtos comestíveis e conservas que servem de provisões para a época das monções que começam no mês seguinte. Mas as feiras mais simples das festas das aldeias sempre tinham as tendas onde se vendiam os doces tradicionais, como kaddiô-boddiô, laddu, khajim, sacrichim baulim, biô, etc. Ninguém voltava para a casa sem um embrulho desses doces. Quem fazia bem os negócios com isso eram os hindus.

A festa continuava em casa. O almoço ou o jantar do dia incluía pratos especiais. Uma festa goesa é inconcebível sem sorpotel, sadnam, e pulau. E tudo isso bem regado pelos adultos com garrafas de feni (aguardente de cajú ou de palmeira). Para brinde usava-se o Porto, mas isso era já um privilégio dos poucos. Os mais pobres tentavam substitui-lo quando pudessem com qualquer vinho branco ou moscatel. Saud korunk (beber à saúde) faz parte das celebrações sociais dos católicos goeses, e cantam-se os vivas invocando as bênçãos das três pessoas da Santíssima Trindade.

Sobre o autor

Teotónio R. de Souza (1947-2019). Historiador nascido em Goa, ex-sacerdote católico, foi fundador e diretor do Centro Xavier de Pesquisas Históricas. Era professor catedrático na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, no departamento de História. Foi diretor do jornal da Associação dos Cientistas Sociais do Espaço Lusófono e diretor-adjunto da revista Fluxos e Riscos- Revista de Estudos Sociais.