Ao retomar o tema "...uma das autarquias que... apresenta/apresentam", gostaria de agradecer a Jorge Madeira Mendes a leitura atenta da resposta que dei. E faço-o com a consciência de que a reflexão sobre a nossa língua comum é a melhor forma de a honrarmos e de a preservarmos na sua diversidade.
Gostaria ainda de asseverar o meu profundo respeito por todos aqueles que se interessam por estas lides e/ou a elas se dedicam.
Considerei, na resposta anteriormente dada, que a frase "A C.M. do Porto é uma das autarquias que, a nível nacional, apresenta uma das mais baixas taxas de absentismo do país", colocada pela consulente Sandra Silva à apreciação do Ciberdúvidas, estava correcta, como correcta estaria essa mesma frase se o verbo apresentar estivesse no plural. Ao fazê-lo, estava consciente de que, como acontece sempre que há mais do que uma hipótese de construção, havia posições divergentes que aceitavam apenas uma das hipóteses, no caso vertente, a que apresenta o verbo no plural: "A C. M. do Porto é uma das autarquias que, a nível nacional, apresentam uma das mais baixas taxas de absentismo do país".
Para além de Rodrigo de Sá Nogueira que no seu Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem considera o uso do verbo no singular errado, poderíamos referir, por exemplo, João Andrade Peres e Telmo Móia que, na obra Áreas Críticas da Língua Portuguesa, consideram preferível o uso do plural. Note-se a diferente postura destes estudiosos. Defensores, todos, de uma mesma estrutura, se para um esta é certa (por oposição a errada), para outros é preferível.
Devo afirmar que mantenho a análise inicialmente efectuada por considerar, como expliquei com argumentos tão sérios como quaisquer outros que defendam uma posição contrária com base nas hipóteses de interpretação que a língua nos permite, que há condições estruturais que suportem as duas interpretações.
Não deixa de ser interessante que se considere o uso do verbo no singular um descuido, ou uma "flor de linguagem" sem se pensar que no jardim da linguagem esta estrutura é uma flor cuja persistência nos deveria fazer hesitar um pouco antes da sua rejeição liminar. Trata-se efectivamente de um descuido – mantendo uma designação que não perfilho – com vários séculos de permanência e, o que é ainda mais sintomático, com uma constância estrutural digna de ser admitida como uma outra forma de construção e não como um erro ou descuido. Assim, e pegando nos exemplos dados por Rodrigues Lapa na Estilística da Língua Portuguesa, Coimbra Editora, Limitada, diz Frei Luís de Sousa (séc. XVI-XVII):
"Foi uma das primeiras terras de Espanha, que recebeu a fé de Cristo."
E diz Manuel Bernardes (séc. XVII-XVIII):
"Uma das cousas, que derrubou Galba, foi tardar algum tempo."
No século XIX diz Júlio Dinis, segundo informação do consulente Jorge Madeira Mendes:
"A família ... é das que mais deve à Morgadinha".
Também Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo, apresentam exemplos de "prevaricadores": Camilo Castelo Branco (séc. XIX):
"Acurvado sobre a mesa do seu lavor mercantil, era, aí mesmo, um dos primeiros homens doutos que escrevia em português sem mácula."
Fernando Namora e Aquilino Ribeiro (ambos do século XX):
"O homem fora um dos que não resistira a tal sortilégio."
"O bispo de Silves foi um dos que caiu no erro funesto."
São, pois, variados e de diferentes épocas os autores que usam esta estrutura. Para não referir o falante comum, pois, se é uma flor da linguagem, temos de admitir que, dada a sua proliferação, há muito fugiu do jardim dos autores de renome e se tornou flor campestre.
Parece-me, por isso, mais adequado considerá-la uma outra forma de expressão que a língua, na sua grande maleabilidade, nos oferece. E não estou sozinha nesta interpretação. Assim o consideram: I - Celso Cunha e Lindley Cintra, que dividem as construções em que entre a expressão " um dos" em dois grupos: a) um dos + nome + oração relativa
Consideram aceitáveis frases em que o verbo da oração relativa esteja quer no singular quer no plural.
Ex. 1 "É um dos raros homens que têm o mundo nas mãos." Augusto Abelaira
Ex. 2 " Foi um dos poucos do seu tempo que reconheceu a originalidade e a importância da literatura brasileira." João Ribeiro
Acerca deste grupo dizem os autores em observação:
"O verbo no singular destaca o sujeito do grupo em relação ao qual vem mencionado, ao contrário do que ocorre se construirmos a oração com o verbo no plural."
b) um dos + oração relativa
Nos casos em que a oração relativa ocorre imediatamente a seguir à expressão um dos, os autores recomendam o uso do plural, embora registem exemplos de escritores que não cumprem esta norma. Saliento que os exemplos apresentados por Rodrigo de Sá Nogueira se situam neste segundo grupo, contrariamente à frase em análise, que se situa no primeiro.
II - Evanildo Bechara que, na Moderna Gramática Portuguesa, diz:
"f) Em linguagem do tipo um dos … que, o verbo da oração adjetiva pode ficar no singular (concordando com o seletivo um) ou no plural (concordando com o termo sujeito no plural), prática aliás, mais frequente, se o dito verbo se aplicar não só ao relativo mas ainda ao seletivo um:
"Este era um dos que mais se doíam do procedimento de D. Leonor." (Alexandre Herculano)
"Um dos nossos escritores modernos que mais abusou do seu talento, e que mais portentos auferiu do sistema…" (A. Herculano)
"Demais, um dos que hoje deviam estar tristes eras tu" (Carlos de Laet)
O singular é de regra quando o verbo da oração só se aplica ao selectivo um. Assim os dizeres "foi um dos teus filhos que jantou ontem comigo", "é uma das tragédias de Racine que se representará hoje no teatro", será incorreto o emprego do número plural; o singular impõe-se imperiosamente pelo sentido do discurso." p. 562
III - Rodrigues Lapa, que, na obra acima referida, defende as duas construções, citando as frases de Frei Luís de Sousa e de Manuel Bernardes, que aqui se repetem:
"Foi uma das primeiras terras de Espanha, que recebeu a fé de Cristo."
"Uma das cousas, que derrubou Galba, foi tardar algum tempo."
Este autor diz ainda:
"Tudo depende afinal em saber qual é o antecedente do pronome relativo: se uma, se o plural que se lhe segue. Vê-se bem que os dois escritores empregaram o verbo no singular, porque querem chamar mais vigorosamente a atenção para uma terra e para uma cousa; o plural faria com que essa terra e essa cousa se não distinguissem perfeitamente do grupo das outras, em cuja companhia vêm mencionadas." p. 225
Seguidamente refere-se à lucidez da Academia Francesa que já em 1798 admitiu tanto o plural como o singular em estruturas deste tipo, e cita uma frase traduzida que exemplifica a posição da Academia:
"A astronomia é uma das ciências que mais honra (ou honram) a humanidade."
Ainda quanto ao uso desta duplicidade no francês, cito Grevisse, Le Bon Usage, ed. DeBoeck Duculot, na edição organizada por André Goosse:
"d) Si ce qui précède le relatif est un syntagme complexe, on doit déterminer où se trouve, effectivement, l'antécédent.
(...)
2.º Le pronom relatif est précédé de un de + nom ou pronom pluriels :
Il répondit à un des professeurs qui l'interrogeait ... ou ... l'interrogeaient. " p. 1319
Em síntese, o uso tanto do singular como do plural é registado por estudiosos da língua portuguesa e também da língua francesa. Não pretendo fazer uma análise comparativa da estrutura. Pretendo, apenas, demonstrar que a posição que defendo não é fruto de argumentos conjunturais; é, antes, fruto de alguma reflexão e de algum estudo.
Defendo que, quando o antecedente do pronome relativo é uma expressão complexa, o relativo pode concordar com o núcleo dessa expressão, ou com o nome que fique mais próximo do pronome e que se liga ao núcleo, normalmente, por meio de uma preposição. Esta situação acontece com outras expressões complexas.
Vejam-se os exemplos 1 e 2:
1 - A publicação dos decretos sobre o trabalho que deu origem a um movimento de contestação já está concluída.
2 - A publicação dos decretos sobre o trabalho que deram origem a um movimento de contestação já está concluída.
Em 1, toda a expressão que constitui o sujeito da oração principal corresponde ao antecedente do pronome relativo, que concorda com o núcleo dessa expressão, isto é, com o nome publicação. Em 2, o pronome relativo incide sobre o complemento determinativo de publicação, e concorda com decretos, o que justifica o plural do verbo. Repare-se como o sentido, efectivamente, muda entre 1 e 2.