Agradeço ao dr. José Neves Henriques as suas amáveis palavras. É através da controvérsia, certamente, que todos aprendemos, uma vez que ela nos obriga, como diz, "a observar, a pensar, a estudar e a resolver"; é também esse o meu objectivo, e é por isso mesmo que, mais uma vez, me permito discordar da sua explicação.
O dr. José Neves Henriques considera que a frase "Hoje, uma língua que não se defende, morre", "para ser escrita com todo o rigor de pontuação", seria "Hoje, uma língua, que não se defende, morre".
Ora, a frase "que não se defende" é uma oração relativa adjectiva restritiva e, como tal, não pode ficar entre vírgulas, dado que ela é parte integrante do sujeito, ou seja, equivale a um adjectivo ("indefesa") e restringe o conceito do nome ao qual está associada ("língua"); não é uma língua qualquer que morre, é uma língua que não se defende, é uma língua indefesa.
Esta oração não pode ser isolada por vírgulas; se isso acontecesse, então teríamos uma oração relativa adjectiva explicativa, que acrescentaria ao nome uma informação acessória. Suponhamos a frase: "Uma língua, que é um património inestimável, tem de se defender". Aqui estamos na presença de uma oração relativa adjectiva explicativa, uma oração isolada por vírgulas e que podemos omitir, sem que o sentido essencial da frase se modifique: "Uma língua tem de se defender".
Mas, na frase em apreço, tal situação não se pode verificar, dado que, ao retirarmos da frase a oração "que não se defende", estamos a alterar o seu sentido, estamos a dizer que uma língua morre, quando o que se pretende dizer é que morre uma língua que não se defende.
Na frase de Saramago "Hoje, uma língua que não se defende, morre", a vírgula separa o sujeito do predicado e esta é a questão formulada por um nosso consulente, que quer saber se essa vírgula está correctamente colocada ou não.
Embora todos saibamos que colocar uma vírgula entre o sujeito e o predicado é um erro grosseiro, há todavia estruturas frásicas em que tal situação se pode verificar.
Segundo a obra brasileira Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara (Editora Lucerna, Rio de Janeiro), emprega-se a vírgula:
(...)
"h) para separar, quase sempre, as orações adjetivas restritivas de certa
extensão, principalmente quando os verbos de duas orações diferentes se juntam:
"No meio da confusão que produzira por toda a parte este acontecimento inesperado e cujo motivo e circunstâncias inteiramente se ignoravam, ninguém reparou nos dois cavaleiros..." (...)OBSERVAÇÃO: Esta pontuação pode ocorrer ainda que separe por vírgula o sujeito expandido pela oração adjetiva:
"Os que falam em matérias que não entendem, parecem fazer gala da sua própria ignorância."" (sublinhado nosso)
Temos então uma excepção à conhecida regra de não separar por vírgula o sujeito do predicado, numa situação que corresponde à descrita na referida gramática.
Assim, a frase "Hoje, uma língua que não se defende, morre" está correcta, quer na íntegra quer sem o advérbio hoje, conforme surgiu no título do artigo publicado na reabertura do Ciberdúvidas.