Engavetado desde sua assinatura, em 1990, voltou a assombrar o acordo ortográfico que visa a unificar a escrita do português nos países que o adotam como Língua oficial. O Ministério da Educação chegou a anunciar a entrada em vigor da reforma no Brasil já em 2008. Felizmente, essa data foi postergada. Por mais modorrenta que seja, essa discussão não deve se extinguir. Ela tem implicações profundas de ordem técnica e comercial, além de provocar ainda mais ansiedade nos milhões de brasileiros mergulhados em dúvidas no seu empenho diário para falar e escrever bem.
Dominar a norma culta de um idioma é plataforma mínima de sucesso para profissionais de todas as áreas. Engenheiros, médicos, economistas, contabilistas e administradores que falam e escrevem certo, com lógica e riqueza vocabular, têm mais chance de chegar ao topo do que profissionais tão qualificados quanto eles mas sem o mesmo domínio da palavra. Por essa razão, as mudanças ortográficas interessam e trazem dúvidas a todos. O acordo diz como se devem usar o hífen e o acento agudo e outros desses minúsculos sinais gráficos que já fizeram estatelar muitas reputações. A diferença entre um sucesso e um vexame pode ser determinada por uma simples frase mal utilizada. Portanto, não há como ignorar quando os sábios se reúnem para determinar o que é certo e errado no uso do português.
A subversão da ortografia via Internet
Nas grandes corporações, os testes de admissão concedem à competência lingüística dos candidatos, muitas vezes, o mesmo peso dado à aptidão para trabalhar em grupo ou ao conhecimento de matemática. Diversas pesquisas estabelecem correlações entre tamanho de vocabulário e habilidade de comunicação, de um lado, e ascensão profissional e ganhos salariais, de outro. Salte-se agora do micro para o macro. Uma decisão aparentemente arcana sobre o uso correto do trema, por exemplo, pode ganhar contornos bem mais amplos em um momento em que os idiomas nacionais sofrem todo tipo de pressão desestabilizadora. Como diz o lingüista britânico David Crystal, a globalização e a revolução tecnológica da internet estão dando origem a um "novo mundo lingüístico". Entre os fenômenos desse novo mundo estão as subversões da ortografia presentes nos "blogs" e nas trocas de "e-mails" e o aumento no ritmo da extinção de idiomas. Estima-se que um deles desapareça a cada duas semanas. Cresce a consciência de que as línguas bem faladas, protegidas por normas cultas, são ferramentas da cultura e também armas da política, além de ser riquezas econômicas.
A reforma do português ora em curso vai se defrontar com um desafio inédito. Outras mudanças foram feitas em situações em que era bem menos intenso o ritmo de entrada de palavras e conceitos na corrente da vida cotidiana. Em tempos de Internet, as línguas, por natureza refratárias a arranjos de gabinete e legislações impostas de cima para baixo, podem se comportar como potros indomáveis. Quem vai ligar para as novas regras de uso do hífen quando mantém longas e satisfatórias conversações na internet usando apenas interjeições e símbolos gráficos como os consagrados "emoticons" para alegre :-) ou triste :-( ?
David Crvstal cunhou o termo "netspeak" para designar as formas inéditas de expressão escrita que a internet gerou. A inclusão de símbolos audiovisuais, os "links" que permitem "saltos" de um texto para o outro – nada disso existia nas formas anteriores de comunicação. A comunicação por escrito se tornou mais ágil e veloz, aproximando-se, nesse sentido, da fala. "A necessidade de diminuir o tempo de escrita e se aproximar do tempo da fala levou os usuários a ser cada vez mais objetivos e compactos", diz o lingüista Antonio Carlos dos Santos Xavier, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Essa tendência é mais notória nas conversas que os adolescentes mantêm através de programas como o MSN, com abreviações como blz (beleza) e frases de sonoridade tribal como "bora no cinema – pod c as 8?" (vamos ao cinema - pode ser ás 8?).
Mas o "netspeak" não é só para os imberbes. Até no âmbito profissional a objetividade eletrônica está imperando. A carta comercial que iniciava com a fórmula "vimos por meio desta" é peça de museu. "Gêneros como a carta circular ou o requerimento estão em extinção. O "email" absorveu essas funções", observa a lingüista Cilda Palma, que, em sua dissertação de mestrado na UFPE, estudou a comunicação interna de uma empresa pública – um posto regional dos Correios – e de uma empresa então recentemente privatizada, a Petroflex. Ela constatou que a correspondência eletrônica tornou a comunicação mais informal – e que essa tendência foi mais longe na empresa privada. Observa a pesquisadora: "Os Correios ainda mantêm uma infra-estrutura anacrónica, que exige fotocópias e carimbos nos comunicados internos".
Embora a língua sofra ataques deformadores diários nos "blogs" e "chats", a palavra escrita nunca foi usada tão intensamente antes. Os mais otimistas apostam que os bate-papos da garotada travados com símbolos e interjeições hoje podem ser a semente de uma comunicacão escrita mais complexa, assim como o balbuciar dos bebês denota a prontidão para a fala lógica que se seguirá. Pode ser. Seria ótimo que fosse assim. Por enquanto, uma maneira de se destacar na carreira e na vida é mostrar nas comunicações formais perfeito domínio da tradicional norma culta do português. Vários estudos demonstram a correlação positiva entre um bom domínio do vocabulário e o nível de renda, mesmo que não se possa traçar uma correlação direta e linear entre uma coisa e outra. Além de conhecer as palavras, é preciso que se tenha alguma coisa a dizer de forma lógica e racional. O vocabulário, por si só, não garante precisão ou beleza na escrita. "Machado de Assis compôs toda a sua obra com aproximadamente 12 mil vocábulos, enquanto Coelho Meto, autor ilegível, teria empregado mais de 35 mil palavras diferentes na sua longa e obscura carreira", lembra o professor de português Cláudio Moreno. Mesmo que pareça meio quadrado na mesa do bar, quem mais se distanciar do linguajar trivial dos "chats" nas comunicações formais mais será notado pela competência.
É empobrecedor, porém, ignorar a revolução cultural da internet. Como toda inovação tecnológica abrangente, a civilização digital ampliou o léxico de muitos idiomas. entre eles o português. E o fez. Basicamente, pela incorporação de palavras em inglês ("site", "download", "hardware"). Essas adições causam horror aos puristas da linguagem. Bobagem. A maior fonte de enriquecimento dos idiomas em todos os tempos é a incorporação de vocábulos oriundos de línguas estrangeiras e de revoluções tecnológicas. O português cresceu muito enquanto seus navegadores exploravam os "mares nunca dantes navegados", cantados por Luís de Camões. "Calcula-se que o português medieval tinha perto de 15 mil vocábulos. Em meados do século XVI, com a expansão marítima, o total chegaria a 30/40 mil", observa o filólogo Mauro Villar, do Dicionário Houssais.
A língua e a economia
Nesse processo, é preciso levar em conta também a popularização do vocabulário especializado, que, em geral, não entra nos dicionários. Por mais abrangente que seja um dicionário, ele recolhe apenas algumas centenas de milhares de palavras. O Houssais tem perto de 230 mil verbetes. O Oxford English Dictionary, o famoso OED, registra 615 mil. Ambos são recortes muito limitados de um universo em permanente expansão. Só as palavras necessárias à prática da medicina estariam na casa de 600 mil. Eventualmente, uma grande virada em um desses campos científicos puxa o vocabulário especializado mais para perto do chão dos dicionários. DNA é um exemplo eloqüente: o acrónimo em inglês de ácido desoxirribonucléico (componente fundamental do código genético) saiu dos laboratórios e se incorporou ao dia-a-dia.
A internet é, além de tudo, um campo essencial na disputa pelo mercado dos idiomas. O estudo da economia da língua é um campo promissor. A Fundação Telefónica, da Espanha, está promovendo um projeto de pesquisa que deve durar quatro anos e pretende aferir o peso econômico do idioma espanhol no mundo. "O valor de uma língua se relaciona com sua capacidade de incentivar os intercâmbios económicos", explica o economista José Luis García Delgado, coordenador do projeto. Embora não seja possível atribuir uma cifra monetária a uma língua, faz pleno sentido falar no valor relativo que ela tem na comparação com outras línguas. O número total de falantes nativos é um fator essencial. O espanhol tem cerca de 450 milhões, patamar semelhante ao do inglês (o português fica em torno de 250 milhões). O inglês, porém, domina a Internet, de acordo com o Internet World Stats, "site" que concentra números mundiais sobre a rede, 30 por cento dos usuários da rede são falantes nativos do idioma de Shakespeare, contra nove por cento de usuários da língua de Cervantes. Mais importante, o inglês é forte como segunda língua. O British Council estima que pelo menos 1 bilhão [mil milhões] de pessoas estão estudando inglês hoje no mundo.
"O inglês está destinado a ser uma língua mundial em sentido mais amplo do que o latim foi na era passada e o francês é na presente", dizia o presidente americano John Adams no século XVIII. A profecia se cumpriu: o inglês é hoje a língua franca da globalização. No extremo oposto da economia lingüística mundial, estão as línguas de pequenas comunidades declinantes. Calcula-se que hoje se falem de seis mil a sete mil línguas no mundo todo. Quase metade delas deve desaparecer nos próximos 100 anos. A última edição do "Ethnologue" – o mais abrangente estudo sobre as línguas mundiais –, de 2005, listava 516 línguas em risco de extinção.
O português está entre os vencedores da globalização. É uma língua que vem crescendo na internet: nos últimos sete anos, o número de falantes da língua portuguesa que navegam na rede aumentou em 525 por cento (embora ainda represente apenas quatro por cento dos usuários).
O acordo ortográfico tem a intenção manifesta de incrementar o "valor de mercado" do português. Desde o início criticada dos dois lados do Atlântico, a unificação da língua portuguesa foi uma causa cara ao filólogo brasileiro Antônio Houaiss, morto em 1999. O acordo foi firmado em 1990 pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), então com sete membros – Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Mais tarde, o Timor-Leste também faria sua adesão. Os prazos de implantação das novas regras estipulados em 1990 nunca foram cumpridos e a ratificação do acordo foi adiada sucessivamente. Um novo acerto firmado em uma conferência de chefes de Estado da CPLP em 2004 determinou que bastaria a ratificação de três membros para que o acordo entrasse em vigor, o que aconteceu no fim do ano passado. O problema é que só os três países que ratificaram – Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe – deram mostras de querer levar a reforma adiante. Naturalmente, nenhuma unificação ortográfica merece ser chamada assim se a matriz da língua, Portugal, não a seguir. Autoridades portuguesas têm falado em esticar os prazos de adaptação às novas regras em até dez anos.
O berbicacho do berbequim
"Veja" ouviu quatro profissionais da língua portuguesa. O único que considera a unificação importante do ponto de vista da política da língua é o gramático Evaníldo Bechara, da Academia Brasileira de Letras. Mas ele faz restrições ao conteúdo da reforma, que teria perdido a oportunidade de racionalizar algumas regras. Os outros três especialistas são mais radicais na crítica. "É um acordo meia-sola", avalia Pasquale Cipro Neto. Ele cita algumas palavras que continuam sendo grafadas de duas formas, conforme a pronúncia ou as idiossincrasias de cada país - caso de "cómodo" (Portugal) e "cômodo" (Brasil), ou de berinjela/beringela. "Essa idéia messiânica, utópica de que a unificação vai transformar o português em uma língua de relações internacionais é uma tolice", diz o professor Cláudio Moreno. Sérgio Nogueira considera que só uma categoria vai ganhar vantagens com o acordo: os professores que dão aulas e palestras sobre língua portuguesa. "Se a reforma sair, vou ficar rico de tanta palestra que vou dar", ironiza. As editoras em geral estariam no lado perdedor do acordo, já que teriam de adequar seus catálogos à nova grafia. O custo médio para a revisão e a preparação de um único livro ficaria em torno de cinco mil reais (1900 euros). A revisão de enciclopédias e dicionários seria ainda mais custosa. "Só a atualização do nosso banco de dados ficaria entre 200 mil e 400 mil reais (76 mil e 152 mil euros)", calcula Breno Lerner, diretor-geral da Melhoramentos, que publica os dicionários Michaelis.
As diferenças culturais não se resolvem assim apenas com um golpe de pena. Mesmo com a ortografia unificada, dificilmente uma dona-de-casa portuguesa vai comprar um livro de culinária brasileiro que fala em "açougue" ("talho" em Portugal), e o carpinteiro brasileiro com um manual português nas mãos talvez fique embasbacado com a palavra "berbequim" (furadeira). De outro lado, a grafia cheia de letras mudas – tecto, facto, acto – não impediu o português José Saramago de ser "best-seller" no Brasil. Como a natureza, a arte e a inteligência sempre encontram uma maneira de se manifestar. Com a ajuda de uma norma culta e amplamente aceite, esse trabalho fica mais fácil.
texto original da revista brasileira Veja, transcrito no Courrier Internacional (edição portuguesa), de 26 de Setembro de 2007