Ao contrário do sentido etimológico, tetra (campeonato) ou penta (campeonato) passaram a ser usadas nos meios desportivos portugueses significando quatro (campeonatos) ou cinco (campeonatos) seguidos. O jornalista Alfredo Farinha é quem mais tem combatido este cada vez mais generalizado erro de semântica. Com a devida vénia, Ciberdúvidas acolhe extractos mais significativos do seu último artigo à volta desta imprecisão linguística. Foi publicado na sua coluna do jornal "A Bola", 'Deliberadamente ao ataque', do passado dia 15.
A gramática e o sentido das palavras
Alfredo Farinha
O tetracampeonato, no sentido que a palavra tem vindo a adquirir e acabará por passar, inevitavelmente, para a «Enciclopédia Luso-Brasileira», era a última jóia da coroa que restava ao Sporting dos «violinos». O que espanta é que, perante as dúvidas e as reservas que gravitam ao redor de determinadas circunstâncias em que os portistas obtiveram o quarto título consecutivo (e estão à beira de alcançar o quinto), o humilde, resignado e descaracterizado Sporting não tenha lutado por aquilo que, segundo alguns observadores, ainda deveria pertencer-lhe.
Conforme compromisso aqui assumido há vários dias, cá estou, de novo, a dizer o que me parece das palavras tetracampeão e pentacampeão, escolhidas não sei por quem mas já adoptadas e acariciadas pela generalidade dos portistas, o que torna praticamente irreversível a sua entrada directa na enciclopédia vocabular luso-brasileira para significarem a conquista do título de campeão nacional de futebol, por uma mesma equipa, durante quatro ou cinco anos consecutivos — proeza única, entre nós, prestes a ser alcançada pela equipa do F. C. Porto, SAD, já detentora (?) do primeiro (tetracampeão), juntamente com o Sporting Clube de Portugal.
Não há dúvida de que se trata de duas palavras sugestivas, bonitas, com o ritmo e a melodia próprios para agradar ao ouvido dos estranhos e alegrar a alma daqueles a cujo clube elas se referem. Há, na verdade, palavras que têm o condão de cair no goto ou no coração das multidões, a ponto de o seu poder de atracção e de sugestão exceder o seu próprio significado inicial. Lembro-me de, aí por meados dos anos 70, ter lido um artigo, de origem francesa ou italiana, cujo autor, sem tirar uma vírgula aos elogios que as actuações de Eusébio desencadeavam por toda a parte, alvitrou a hipótese, aliás aplaudida por psicólogos de renome, de a fantástica popularidade do Eusébio poder ser, em boa parte, gerada na singularidade do seu nome e na facilidade e segurança com que ficava na cabeça das pessoas. Algo de semelhante, confessava-me mais tarde, em Buenos Aires, um jornalista argentino, pode ter acontecido com Maradona, cuja popularidade antecedeu, no mundo inteiro, as suas demonstrações ao vivo nos estádios. De onde se conclui, sem preocupações de ordem científica, que razão teria a Maria Papoila quando, a caminho de Lisboa, durante a fuga da serra, madrinha e madrasta da sua juventude, se pôs a cantar no comboio: «Diz que a sorte das pessoas está às vezes no nome que elas têm...»
Não sei se, no caso do F. C. Porto, o nome do herói não terá contribuído, também, para a rapidez com que o aliciante epíteto de tetracampeão se espalhasse por todo o País. A verdade é que, uns bons 30 anos antes, o Sporting fora o primeiro a realizar a proeza dos quatro títulos consecutivos, desfrutava então de uma popularidade equiparável à do Benfica... e ninguém o cognominou de tetracampeão. Seriam os seus adeptos menos imaginativos que os portistas de hoje? Haveria, então, mais respeito pela gramática e pelo real sentido das palavras?
Não obstante o facto, já admitido, de as designações em questão deverem ficar para sempre na gíria futebolística dos portugueses, julgo ter demonstrado, em artigo anterior, que a sua entrada no nosso vocabulário foi precipitada e, do ponto de vista idiomático, claramente anómala. Algumas pessoas vão insurgir-se (já começaram...) e, como é costume, irão tentar, à míngua de outros argumentos e razões, pôr em dúvida a seriedade e os objectivos do autor deste ataque ao património desportivo do F. C. Porto. Retirarei o que escrevi quando me for provado que estou em erro.
Já agora, porém, talvez pudessem os meus eventuais opositores tentar convencer os puritanos que andam a espalhar por aí esta tremenda heresia: «O Sporting Clube de Portugal é o único clube português com quatro títulos consecutivos de futebol no seu palmarés nacional, pois a equipa que teria conquistado para o F. C. Porto o quarto título consecutivo mudou, na passagem do terceiro para o quarto, de estatuto, de nome, de objectivos, que deixaram de ser de natureza exclusivamente desportiva para se integrarem, como empresa de mercado, nas actividades comerciais e industriais comuns.»
Tenho para mim que tais argumentos são de todo irrespondíveis com o mínimo de seriedade exigível a quem tenha em consideração estas duas pré-condições: rigor dos factos, respeito pela verdade. Deu-me que pensar, aliás, a silenciosa humildade com que o Sporting, do presidente da Assembleia Geral ao mais modesto dos seus associados, aceitou, a propósito do quarto título portista, que este tivesse sido, para todos os efeitos, equiparado ao tetra dos leões, que deixavam, assim, de poder orgulhar-se de ter sido, até agora, o único clube português a consegui-lo. E foi então que me apercebi de como estava diferente, submisso, descaracterizado, o velho e glorioso Sporting Clube de Portugal.
Ao longo dos meus muitos anos de jornalista tive, com efeito, oportunidade de conhecer de perto todos os presidentes do Sporting, muitos com intimidade próxima da familiaridade, alguns como confidentes e como amigos pessoais. Sinto-me, por isso, em condições de poder garantir que seria preciso terem mudado muito, em mentalidade e carácter, para se resignarem à perda de um título (o último que restava ao Sporting na história dos campeonatos) a favor de um adversário putativamente mal documentado para repartir com ele os méritos e o orgulho muito justamente correspondentes a essa proeza. Como se teriam batido por esse direito, acompanhados dos milhões de sportinguistas de Portugal e do Mundo, os presidentes do Sporting a quem me refiro! Era diferente, pois, o Sporting? Era... o Sporting Clube de Portugal!(...)
P.S. — Numa das cartas recebidas esta semana, a propósito do tema deste artigo (com cópia à direcção do jornal, para meu castigo e vergonha...), dizia-se, mentirosamente, ter eu escrito que o F. C. Porto não era tetracampeão. Ora o que tenho vindo a sustentar, sem desmentido tentado nem possível, é que o Porto, pela razão de que a palavra grega TETRA significa simplesmente QUATRO e não quatro vezes consecutivas, seria sempre tetracampeão mesmo que os quatro títulos fossem ganhos alternadamente, motivo por que também o Benfica e o Sporting poderiam, se o quisessem, arrogar-se o título de pluritetracampeões. A circunstância verdadeiramente rara e precisa do título em causa resulta não do número mas do facto de terem sido ganhos de forma consecutiva ou continuada. Quem, pateticamente, não for capaz de compreender a diferença, clarissimamente favorável à minha tese, será capaz de compreender a razão por que uma pequena moeda de ouro é capaz de valer quatro ou cinco vezes mais que outra, quatro ou cinco vezes maior, mas de prata?
Título da responsabilidade de Ciberdúvidas. Cf. o texto em contraponto desta controvérsia, Tetra, penta e outros que tais.