Tinham sido dias complicados, febres descontroladas e sem razão aparente, ora muito altas, ora muito baixas, e o braço a inchar, e a doer horrivelmente, assim como se a carne fosse rebentar da pele – mas eu odeio hospitais, e fui tentando tudo (incluindo aquelas mezinhas que a gente já sabe que não resolvem rigorosamente nada mas que dão um grande consolo à alma - e se a alma precisava de ser consolada, meu Deus!) para ver se a coisa se resolvia a nível caseiro.
Até que lá tive de me render às evidências e entrar naquele ambiente terrível de uma sala de espera das urgências de um hospital – que, como toda a gente sabe, é o melhor lugar para se apanhar todas as doenças, para além daquela que a gente já leva de casa. Lá fico encolhida no meu canto, à espera de vez, quando de repente alguém vem ter comigo, «caramba, há que anos não te via!», e dou de caras com um amigo de que há muito tinha perdido o rasto.
Nem sequer era daqueles amigos muito íntimos mas, naquela altura, soube-me a aparição salvadora.
Por nada de especial, apenas porque eu estava sozinha naquela madrugada, e precisava urgentemente de companhia, e podíamos conversar e ser gente, e não apenas uma senha ou um número.
Ele vai buscar-me um café a uma daquelas máquinas de produzir mistelas a que depois, sabe-se lá porquê, dão esse nome, e diz:
«Conta-me tudo».
Sorrio, porque me lembro dos primeiros versos de um belíssimo poema do meu amigo Tolentino Mendonça («Paga-me um café/e conto-te a minha vida»), e falei, falei, porque precisava mesmo de falar e porque assim o tempo não custava tanto a passar e até as dores parecia terem abrandado.
É então que a empregada do guiché fixa em mim os seus olhos, abre a boca de espanto e de repente exclama, no seu açucarado sotaque brasileiro:
«Pôxa, como cê fala bem!»
É a minha vez de fazer um olhar espantado, mas já ela continua:
«Se eu 'tivesse aflita qui nem você, da minha boca, ó, só saía era palavrão mesmo!»
Garanto que, nestes últimos e complicados dias, foi a primeira vez que dei comigo a rir.
E ainda ri mais quando o médico apareceu à entrada da porta e ela gritou:
«Dótor, leve aí a moça pra vê como ela fala bonitinho!»
Foi também a primeira vez na minha vida que o uso mais ou menos escorreito da língua portuguesa funcionou, desavergonhadamente, como cunha.
Texto da autora publicado no Jornal de Notícias de 22 de Junho de 2008