Língua materna - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Língua materna

"(...)Português, irmão, é difícil mas não custa"
(Lourentinho, personagem de um livro de
José Luandino Vieira)

"Pela voz da mãe eles conhecem a mãe deles..."
(Provérbio cabinda)

 

     Há nas nossas relações com a língua materna um certo efeito almofada que, como a mão fresca das mães nas nossas infâncias febris, amortece a queda, suaviza a dor.

     Quem não se lembra de mãos de seda (frias, frias) acordada na noite, mudando toalhas ensopadas em água e vinagre (desconfio que a fórmula completa incluía também algumas lágrimas) sobre testas a arder em fogo forte, no início sempre difícil do cacimbo ou no final teimoso de alguns anos de chuva?

     A febre cedia ao fim de alguns dias à força da palavra, de milagrosos chás de ervas perfumadas e quinino, substância eficaz mas responsável pelas amargosas e amargadas memórias. Pior, só óleo de fígado de bacalhau e alguns purgantes. Mais tarde inventaram a "resochina" e desde aí percebi que há sempre umas infâncias mais infâncias do que as outras.

     Mas, dizia eu, a língua materna cresce connosco e ao mesmo tempo inaugura e aprende a distinguir os cheiros fortes da terra ou o sabor do pão de batata-doce, que como ela também leveda e tem de ser cuidado sob o risco de passar do ponto a abater.. como as pessoas, a língua alargar-se-á convivência com as outras sonoridades, outros empréstimos. Sempre observei com gosto a alquimia generosa da língua portuguesa engrossando ao canto umbundo, sorrindo com o humor quimbundo ou incorporando as palavras de azedar o leite, próprias da língua nyaneka. O contrário também é válido e funciona para o universo das línguas bantu e não só faladas nos territórios, onde hoje se fala também a língua portuguesa.

     Este problema das línguas tornou-se um rio que engrossa, de vez em quando, e sai do leito, perde o sul e alimenta intermináveis discussões nem sempre ajudadas pela corda curta do bom senso e do bom gosto. Mas são sempre assim as makas de família: discute-se muito e faz-se pouco e há sempre tempo para essa e outras confusões.

     Continuando, a língua materna vai connosco à escola e aprende a domesticar-se e a fingir. Assimilada, calçada e de bata branca durante certas horas do dia, solta-se selvagem e descalça na hora do pontapé, do futebol e da pancada. Pode lá disparatar-se sem ser em língua materna?

     Enfim, a língua é uma espécie de segunda pele, impressão digital, única, pessoal, mas transmissível, contagiosa poderia mesmo dizer-se.

     Os contadores de histórias do meu país sabem como usar as suas línguas maternas para realizarem as tarefas de Deus, a transmutação do corpo em voz e, uma vez voz, repetir o murmúrio da tradição que assim se fortalece e se transforma em pedra de tanto durar. Os poetas também sabem desses ofícios: o David Mestre ainda era miúdo e já dizia


(...) Mover a voz para
fora. Subverter-lhe a derme
inquieta no sopro (1)


     À força de voz e no meio da língua fundamos o nosso lugar no mundo e inventamos a utopia quando a terra gela a frio intenso.

     Assim também nos habituamos à dor e à tragédia quando as palavras que a anunciam são palavras da família, são as mesmas de nomear a alegria e os tempos festivos. E, no caso das nossas terras, a tragédia é tanta e tão variada e tão frequente, que cada problema se cola à nossa pele: amigos que já não vamos rever, lugares da infância preenchidos de bombas, cidades que se esconderam (recuso a aceitar que desapareceram) como uma ferida de estimação a aguardar um tempo para ser tratada. Porque isto das dores e dos tempos tem as suas hierarquias, ângulos e perspectivas.

     Assim se acumulam notícias e cresce o espanto que a língua tem dessas armadilhas: amortece a queda, cuida dos viventes, ensinando a conviver com a notícia deste danado tempo dos anos da peste.

     Por isso me custou tanto, quando, de repente, vi e ouvi notícias sobre as crianças do meu país. Primeiro um sobressalto, o reconhecimento dos lugares, o recorte da Baía, o desorganizado das ruas, o sempiterno sorriso. Depois o horror, o corpo doendo, doendo, uma por uma, a história de cada criança, sem família, sem roupa, sem comida, soltas na violência dos dias e das noites. Enganado as horas e os estômagos, crescendo a correr para a morte... Na Sky News - em inglês!

 


(1) David Mestre - "Do Canto à Idade", pag. 19

Fonte

In "O Sangue da Buganvília"

Sobre a autora

Ana Paula Tavares (Lubango, 1952), é uma poetisa angolana. Licenciada em História e Mestre em Literaturas Africanas, está a fazer doutoramento em literatura. Foi Delegada da Cultura no Kwanza Norte e membro do júri do Prémio Nacional de Literatura de Angola de 1988 a 1990. Atualmente leciona na Universidade Católica de Lisboa. Da sua obra, destacam-se: Ritos de Passagem (1985); O Lago da Lua (1999) e A Cabeça de Salomé (2004).