Crónica do historiador e eurodeputado português Rui Tavares, que escreve regularmente no matutino português Público, já segundo as novas regras do Acordo Ortográfico de 1990. Repete-se o que aqui já se assinalou anteriormente sobre a transcrição fonética da palavra espectador: os principais dicionários de referência para o português europeu omitem a articulação do c. Pelo princípio consagrado de ser a fonética a determinar, sempre, a grafia — e não o seu contrário —, passa a grafar-se com ou sem a consoante intercalar, se a pronunciarmos ou não, tanto em Portugal como no Brasil. Quando uma palavra é indistintamente pronunciada com ou sem a consoante, essa variação encontra-se igualmente consagrada. À semelhança do que já ocorria antes com pares como oiro e ouro, loiça ou louça, touro ou toiro, o presente Acordo Ortográfico permite que se escreva, por exemplo, concetual/conceptual, opcionalmente em Portugal, e apenas concetual, no Brasil. Ou olfato/olfacto, opcionalmente no Brasil, e apenas olfato, em Portugal. Ou, ainda, caráter/carácter, em Portugal, e caráter, no Brasil São, ao todo, duzentos casos de reconhecida variação, tanto num país como no outro — num universo de mais de duzentas mil palavras, segundo o registo do Vocabulário Ortográfico do Português, do ILTEC.
Naquele tempo era sempre festa. Bastava sair de casa e atravessar a rua para ficar como louco, e era tudo tão belo, especialmente de noite, que regressando mortos de cansaço esperava-se ainda que qualquer coisa acontecesse, que começasse um incêndio, que nascesse uma criança em casa, ou então que o dia nascesse de repente e toda a gente viesse para a rua e se pudesse continuar a andar a andar até aos campos e depois por detrás das colinas. — Sois sãos, sois jovens — diziam eles —, sois rapazes, não tendes consciência, bem se vê. E uma deles, aquela Tina que tinha saído manca do hospital e que não tinha de comer em casa, ainda assim ria por tudo e por nada, e uma noite, caminhando atrás dos outros, tinha parado de repente e pôs-se a chorar porque dormir era uma estupidez que roubava tempo à alegria.
Cesare Pavese, La Bella Estate, 1940-49
Num dia do verão de 1952, um pianista de concerto interpretou pela primeira vez a peça de John Cage que consiste em quatro minutos e trinta e três segundos de silêncio. Ou seja, o pianista sentou-se em frente ao piano e não tocou nenhuma nota durante aquele tempo. Começou a chover, e as gotas grossas batendo no telhado eram tudo o que se ouvia. No fim da peça houve gente que abandonou a sala e deixou claro o seu desagrado, vociferando contra o compositor, o intérprete, e o estado das coisas em geral. Achavam aqueles espectadores que aquilo a que tinham acabado de assistir era uma provocação, em mau («uma merda»). Muitos críticos de arte acharam o mesmo, mas em bom («conceptual»). Recentemente li outra explicação, mais simples: os quatro minutos e trinta e três segundos de silêncio de John Cage ensinavam que não havia silêncio — havia as gotas de chuva, os protestos do público — e eram como uma janela para o que estava por detrás.
Os portugueses escrevem subtil e os brasileiros sutil. Isto não mudou na escrita, porque na verdade os portugueses pronunciam mesmo "subtil" e os brasileiros pronunciam mesmo "sutil". Agora a pergunta: qual das duas palavras é mais fiel ao significado? Primeiro, eu diria que talvez a palavra brasileira: sutil, quando dito, parece uma palavra que ondula, com aquele "t" tão delicadamente colado ao "i" antes daquele "l" crepuscular. Mas, pensando bem, talvez a palavra portuguesa, principalmente por causa daquele "b" que mal se ouve mas está lá. Um "b" subtil.
Escrever é agora para mim um exercício de ouvido. O cérebro procura lembrar-se de como a língua pronuncia aquela palavra, tenta ouvi-la dentro da cabeça, para depois a poder escrever. Eu digo aquele "c" em espectador e aquele "p" em conceptual? Se sim, escrevo-o. Se não, omito-o. "Nocturno" tornou-se "noturno" por um "c" que na pronúncia se extinguiu há muito tempo atrás. Se tenho saudades de nocturno? Sim. Mas gosto já de noturno. Nocturno é soturno; noturno é sensual; e gosto mais ainda de “noiturno", uma palavra que talvez nunca tenha existido, nem sei se existirá um dia. (…)
In jornal Público de 20 de Outubro de 2010.