«Se o disparate pagasse imposto, o Acordo [Ortográfico] de 90 chegava para liquidar a dívida pública [portuguesa]», insurge-se o director adjunto do Público, em crónica editada no dia 18 de Outubro de 2010.
Quem gosta do Acordo Ortográfico deve andar feliz. Num repente, jornais e revistas [em Portugal] adoptaram o novo jargão, cuidando de que assim se tornariam mais modernos. Mas não se vê nenhum entusiasmo na opinião pública. As cartas que vão chegando, por correio tradicional ou electrónico, os comentários on-line, os textos nos blogues, tudo surge à antiga (quando não chega simplesmente mal escrito, com erros que dispensam acordos), enquanto do lado de lá das trincheiras se dá o martírio silencioso das consoantes.
No primaríssimo opúsculo Atual, dado à estampa em 2008, os seus autores Malaca [Casteleiro] e [Pedro] Dinis [Correia] garantiam que «o Novo Acordo Ortográfico apenas afeta [sic] a grafia da escrita e não interfere de modo nenhum nem nas diferenças orais, nem nas variações gramaticais ou lexicais». Ora, na página 15 diz-se que eléctrico passa a “elétrico” e espectáculo a “espetáculo”. Mas diz também que, «nos casos em que a consoante se articula, teremos, pois a sua manutenção». Exemplos:”bactéria”, “compacto”, etc. Mas se ninguém diz “batéria” ou “compato”, será que alguém diz “espetador”? Não, é claro. Pronunciamos “espéktadôr”, tal e qual.1 Sucede que alguém, por excesso de zelo ortográfico, resolveu ir mais além. Veja-se este despacho recente da Lusa, um entre muitos: «As duas primeiras jornadas da Liga portuguesa de futebol tiveram menos cerca de 14 000 espetadores na bancada.» Não é caso único: esta agência e, com ela, os jornais e revistas que usam os seus textos sem mudar uma vírgula também descobriram “espetadores” na Red Bull Air Race, no último filme de Danny Boyle, no automobilismo de Vila Real, no Festival do Sudoeste, até numa corrida de touros em Navarra — onde há “espetadores”, sim, senhor, mas não costumam estar nas bancadas, estão na arena. Espetam bandarilhas e até espadas, não se dê antes o azar de o touro lhes espetar um desembolado corno.
O mais caricato de tudo isto é que, no Brasil, de onde supostamente partira a mania de atirar fora consoantes como quem descasca amendoins, ninguém escreve “espetador”. É verdade. Lá, onde se pronuncia “ispétádôrr”, escreve-se, e bem, “espectador”.2 Nós por cá [em Portugal], à cautela, preferimos a boa e velha via do analfabetismo. Que agora até tem um pretexto legal. Querem saber se um texto é escrito de acordo com as novas normas? Tirem-lhe consoantes. Não importa porquê nem a que custo. Umas consoantes a menos e aí está o vero texto. Cheio de “ação”. Muito “atual”. Definitivamente “correto”.
Mas a relação “espetáculo”/espectador também tem que se lhe diga. Como é possível fazer derivar a palavra “espectador” (bem dita e bem escrita) da palavra “espetáculo”? Como explicar nas escolas tamanha incongruência? Onde vai a palavra derivada buscar o “c”? Apenas à pronúncia? Ou à raiz antiga entretanto adulterada e desfigurada?
Se o disparate pagasse imposto, o Acordo de 90 chegava para liquidar a dívida pública. Como não paga, os liquidados somos nós e a língua. Espetados contra essa parede de erros e misérias a que uma trupe de inomináveis malabaristas resolveu chamar lei.
1 N. E.– Ao contrário da pronúncia que Nuno Pacheco afirma ser a de espectador (Acordo Ortográfico de 1945)/espetador (Acordo Ortográfico de 1990) em português europeu, tanto o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa como o Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora transcrevem a pronúncia-padrão da palavra em apreço sem [k] e com é aberto átono: [ɨʃpɛtɐdóɾ] e [(i)ɨʃpɛtɐˈdoɾ], respectivamente. Transcrição semelhante apresenta António Emiliano, em Fonética do Português Europeu: Descrição e Transcrição (Lisboa, Guimarães Editores, 2009, pág. 174): [ʃpɛtɐˈdoɾ].
2 N.E. – Outra imprecisão que aqui se corrige também: a pronúncia-padrão culta de espectador no português do Brasil inclui a articulação de um [k]. O facto de o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, na edição brasileira de 2001, registar espectador não indica a presença de uma "consoante muda" na variante brasileira; antes mostra que o dicionarista não tinha de aplicar o critério da Base V do Formulário Ortográfico de 1943 (em vigor no Brasil até finais de 2008), segundo o qual eram suprimidas letras consonânticas não pronunciadas: no Brasil, desde os anos 40 do século passado que se escrevia (e vai continuar a escrever-se) diretor e não director, porque, neste caso, a c não se associava qualquer articulação; mas escrevia-se e continuará a escrever-se espectador na variante brasileira, porque o c corresponde à pronúncia de uma unidade fónica, [k]. Com a aplicação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 (AO 90) no Brasil, a forma consagrada pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras é espectador. Mais uma vez se evidencia que a palavra se escreve com c neste país, justamente porque na pronúncia culta brasileira se pronuncia um [k]; observa-se assim o estipulado no n.º 1, a) da Base IV do AO 90 (sublinhado nosso):
Assim:
a) Conservam-se nos casos em que são invariavelmente proferidos nas pronúncias cultas da língua: compacto, convicção, convicto, ficção, friccionar, pacto, pictural; adepto, apto, díptico, erupção, eucalipto, inepto, núpcias, rapto [...]»
In Público de 18 de Outubro de 2010.