O Acordo Ortográfico não diz respeito apenas à leitura e não envolve só portugueses e brasileiros. Leio em declarações recentes de Maria Lúcia Lepecki o seguinte: «Sempre achei que o Acordo Ortográfico não é preciso; um brasileiro lê perfeitamente a ortografia portuguesa e um português lê perfeitamente a ortografia brasileira.» Salvo o devido respeito por aquela minha prezada colega, acho a afirmação escassa.
Antes de mais: sei bem que a ortografia e os seus reajustamentos contendem com diferentes, às vezes melindrosos, aspectos e interesses: de editores, de educadores, de escritores, etc. De todos estes e também do cidadão comum, para quem, quase sempre subconscientemente, o idioma é um repositório de representações, de volições, de atitudes simbólicas e mesmo de traumas assentes em séculos de uso, de transformação e de relacionamento intercultural. Sei disso e a todos esses aspectos e interesses há que estar atento, mesmo com a noção de que, em certos momentos históricos, alguns deles têm que ser sacrificados, em favor de outros, entendidos como prioritários. Como quem diz: não se pode ter tudo.
É por isso que colocar o Acordo Ortográfico no plano da leitura e apenas envolvendo portugueses e brasileiros é cingir a reflexão sobre o idioma a um domínio muito estreito, puramente funcional e, para mais, limitado a dois dos países e seus falantes (neste caso: leitores) que têm o português como língua oficial. Faço, evidentemente, a Maria Lúcia Lepecki a justiça de estar certo de que ela sabe que a questão é muito mais ampla e complexa.
Deixo aqui de parte outros temas e centro-me, por agora, no seguinte: na premência estratégica deste acordo. Se queremos (eu quero) que o português tenha hipóteses, mesmo que de difícil concretização, de alguma afirmação internacional em confronto com outras línguas, então não podemos continuar a ignorar as debilidades de um cenário linguístico em que alegremente convivem duas ortografias e mesmo, se as coisas forem por este caminho, outras mais, à medida que os recentes países de língua oficial portuguesa (e sobretudo Angola e Moçambique) forem ganhando projecção, nesse e noutros planos.
É reconfortante declararmos a dimensão transcontinental de um idioma falado por mais de 200 milhões de pessoas, mas alguma coisa temos que fazer, se desejamos que assim continue a ser. Isto não põe em causa, obviamente, o plano da criatividade lexical ou da especificidade sintáctica: nenhum acordo obriga ou obrigará a dizer "autocarro", em vez de "ônibus" ou "machimbombo"; e nem se trata de impor a suposta correcção de «vou dizer-lhe» perante «vou lhe dizer». Trata-se tão-só de reconhecer que escrever "ótimo" em nada altera o sentido do vocábulo, a sua dignidade etimológica ou a sua pronúncia — até porque é assim mesmo que pronunciamos (a bela língua italiana há muito que escreve "ottimo"). Se há aspecto do idioma que é marcado por acentuada convencionalidade, esse aspecto é precisamente a ortografia. E as convenções são reajustadas, quando a realidade das coisas a isso aconselha, sem risco de desfiguração cultural e com todas as vantagens de um entendimento possível entre países, sendo inaceitável que um deles se arrogue direitos de propriedade sobre o idioma. O que está em causa, convém lembrar, é um acordo estratégico, não uma unificação linguística radical e absoluta, do mesmo modo que pensar uma língua sem qualquer espécie de regulação é convidar à sua rápida e irreversível fragmentação. Se é isso que queremos, então concordo que o acordo ortográfico é desnecessário.
Seria óptimo (ou ótimo...) que pensássemos as coisas também por este prisma. E que não nos fixássemos em análises desfocadas do problema, como aquela que, com sumária ligeireza, diz: o inglês não precisa de acordo ortográfico. É óbvio que não. Mas essa é outra questão, que tem de ficar para outro momento.
in Público do dia 22 de Março de 2008