Uma crónica bem-humorada, pró-Acordo Ortográfico, assinada pelo jornalista Ricardo Garcia e publicada num jornal que se tem destacado na sua oposição à nova reforma do português escrito em Portugal.
Preocupado que sou com o futuro do planeta, fiz esta semana algo que planeava fazer há muito tempo: verificar qual é o impacto ambiental do Acordo Ortográfico — que não abreviarei por AO, por respeito à nossa língua, a material e a incorpórea. Tinha uma suspeita, a de que o acordo traria um certo benefício. Ao eliminar as consoantes mudas, os textos ficariam mais curtos, com uma consequente poupança em papel e tinta.
O mundo não se governa, porém, com conjecturas. É preciso prová-las, o que basta até prova em contrário — que sempre acaba por aparecer.
Vali-me, então, dos meus sólidos conhecimentos científicos para lançar uma experiência, cujos resultados conto publicar na revista Science ou afixar no quadro de avisos do supermercado mais próximo. Seleccionei dois anos de crónicas publicadas nestas páginas, 100 textos no total. Juntei tudo num só documento e submeti o resultado ao programa informático Lince, que o Governo disponibiliza gratuitamente para converter textos à nova grafia. Aliás, que diabo de nome foram escolher para baptizar o software. Evocar um animal em risco de extinção pouco se coaduna com algo que é, na sua essência, uma novidade.
Mas deixemos estas considerações pessoais de lado. Silêncio, por favor, que aqui se faz ciência. No seu conjunto, as 100 crónicas somavam 324 184 caracteres. Aplicada a terapia do Lince, foram feitas 540 modificações, que fizeram baixar o número de caracteres para 323 753. Ou seja, numa centena de páginas, houve uma redução de 431 caracteres, o que não enche mais do que um terço do antigo “linguado”, dos tempos em que se dactilografava em folhas de 25 linhas, 60 toques.
Chegamos, assim, à seguinte conclusão. Sendo n o número de textos, t o número médio de modificações por texto e c a taxa média de redução de caracteres, temos que para n=100, após a intervenção do felino informático, teremos t=5,4 e c=0,13%. Ou seja, em cada texto, há em média cinco modificações e, a cada 770 caracteres (cerca de 130 palavras), há uma consoante muda que vai à vida. Poder-se-ia dizer que, afinal, o Lince mais lambe do que morde.
Já antevejo os refractários ao Acordo Ortográfico, que permanecem entrincheirados a atirar pedras à realidade, a agarrarem nos resultados da minha brilhante investigação científica para dizer que o tratado é inútil. Podem fazê-lo, a ciência é assim mesmo, fornece os factos tal como são — frase de inigualável nobreza, embora eu não acredite numa única palavra do que nela escrevi.
Do ponto de vista ambiental, qualquer um pode sentir-se tentado a derrubar o Acordo Ortográfico com o argumento de que é necessário reformular milhões de obras anteriormente impressas com a grafia antiga. Tese tola, no entanto. As editoras imprimem novos livros quando sabem que vão fazer dinheiro — com esta ou aquela grafia, é completamente indiferente.
Assim, no saldo final, temos que, em termos ecológicos, o Acordo Ortográfico tem um impacto marginalmente positivo. É pouco, mas, nestes tempos de crise, qualquer tostão conta. E, para mim, é mais um elemento para a minha convicção de que o acordo não é nenhum bicho papão, pelo contrário. Quando comecei a escrever, na primária, desapareceram vários acentos (como os de “êle” e “sòmente”). Muito mais tarde, tendo mudado de país, adaptei-me às consoantes mudas. E, em nome da descomplicação e do bom senso, aderirei sem hesitação, e muito menos rancor, à nova ortografia assim que o "Público" finalmente a incorpore.
Já agora, para que conste, esta crónica, escrita em conformidade com o Acordo Ortográfico, ficaria 11 caracteres mais curta. Às vezes, dá jeito.
Crónica publicada na revista Pública, de 18 de setembro de 2011, na coluna do autor "Nós no Mundo".